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‘Queria que fosse um livro não sobre envelhecer, mas sobre viver a vida até o fim’, afirma Clarice Freire

Clarice Freire
Clarice Freire
Em “Para não acabar tão cedo”, seu romance de estreia, a pernambucana Clarice Freire conta a história de duas irmãs idosas que, num belo dia, acordam rejuvenescidas. E quem conduz essa narrativa é o Tempo – Foto: divulgação
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Duas irmãs. Augusta e Lia. A primeira é mais controladora, apegada ao passado. A segunda tem o desejo de viver intensamente a vida. Já são idosas. Em um determinado dia, Augusta acorda, olha para o espelho do banheiro e não reconhece o que vê. O rosto era o da mulher que ela fora quando tinha uns 30 anos de idade. Para completar o seu tormento, quando vai ao quarto da irmã, o que tem diante de si é “a lembrança de uma Lia de décadas atrás.” Lia e Augusta têm a oportunidade de voltar no tempo por um dia. E quem conduz essa história, narrando-a de uma maneira muito singular, é o Tempo. Sábio, divertido e, por que não, às vezes, arrogante. Essa é a trama de “Para não acabar tão cedo” (Record, 216 páginas), romance de estreia da finalista do Prêmio Jabuti de 2017, Clarice Freire.

“Começa a chegar uma fase na vida da gente e parece que o tempo tem que pesar, não tem para onde correr. Mas a vida é muito mais do que isso. Então, para mim, queria que fosse um livro não sobre envelhecer, mas sobre viver a vida até o fim. Dá para entender?”, indaga a autora, que se apresentou a mim como escritora, ilustradora, publicitária, pernambucana, recifense, professora, coordenadora de um curso de escrita criativa, mãe do Vicente e “alguém que sabe existir pela palavra.”

Clarice é autora de “Pó de lua” (2014) e “Pó de lua nas noites em claro” (2016), best-sellers de poesia visual. Foi o segundo título que rendeu a ela o lugar de finalista do Jabuti, na categoria ilustração. Foi um prazer ler “Para não acabar tão cedo”. Foi um prazer conversar com Clarice.

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Marisa Loures – Quando e de que maneira começou sua história com as palavras?

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Clarice Freire – Meu pai é escritor e compositor. Ele é parceiro do Antônio Carlos Nóbrega a vida inteira. Eles fizeram muitas músicas juntos, junto com Ariano Suassuna. Então, eu cresci nesse meio. Vendo os dois fazendo muita poesia. Também sou prima do Marcelino Freire, que é escritor, e também cresci indo para saraus com Marcelino, para as peças de teatro do Marcelino. Então, realmente, minha relação com a palavra é desde sempre, desde que eu me entendo por gente. Tanto que meus dois primeiros livros são de poesia visual, e eu costumo dizer que, para brincar com meu pai na infância, eu estava escrevendo poesia e, para brincar com a minha mãe, eu estava desenhando, porque minha mãe é uma grande ilustradora. Eles têm essa veia artística muito forte dentro de casa.  Minha irmã, por exemplo, é musicista, cantora, compositora. Ela mistura piano clássico com música eletrônica. Então, todo mundo lá em casa, de alguma forma, tem esse lugar muito forte dentro da arte. Meu pai veio do sertão, né? Então, essa coisa dos cantadores, da poesia, da oralidade, é muito forte. Ele também dirige cinema. Gosto de dizer que, para mim, a palavra foi inevitável. É um privilégio muito grande vir de onde eu venho.

– Os textos curtos, precisos e espirituosos são uma marca registrada de sua literatura. No entanto, você agora estreia no romance com a história de Lia e Augusta. O que fez com que essa narrativa precisasse se desenvolver de uma forma mais extensa? O que te inspirou a contar essa história?

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– Eu passei seis anos escrevendo essa história. Foi um processo muito intenso, mas com grandes pausas. Tive grandes intervalos, também, por coisas que aconteceram na minha vida. Essa coisa da perda, que está muito forte no livro. E eu gostaria que o leitor fosse experimentando esse lugar também, foram questões que me atravessaram. Foram seis anos, e, nesse tempo, acontece muita coisa. Deu tempo de eu perder pessoas muito absolutas na minha vida, deu tempo de eu quase perder outras, deu tempo de eu ser mãe. E o livro foi caminhando comigo. Você me perguntou o que foi que me inspirou a contar, né? Como eu te falei, sou aqui de Recife.  Por parte de pai, minha família é do sertão; por parte de mãe, minha família é do agreste. Eu cresci no litoral, fazendo essas viagens, lá e cá. Então, a gente aqui tem uma família de matriarcas muito fortes, dos dois lados da família. Mulheres muito fortes que levaram muito a família com as próprias mãos, com a própria intensidade, que têm esse amor. Acho que o maior amor que eu já vi dedicado a alguém elas conseguem ter pelos filhos, pelos netos. Como também é  um amor que pode ser opressor, sabe? Acho que tem essas duas nuances. E são várias personalidades diferentes que eu tive a chance de observar nessa vida. E tem uma cena que me marcou muito, desde a minha infância, que é da minha avó e da minha tia-avó, deitadas na cama depois do almoço. Elas almoçavam, depois deitavam na cama de casal e ficavam ali fofocando, literalmente. E, claramente, falando mal de todos nós e morrendo de rir. Era uma cena muito icônica para mim. Aquilo era um retrato da fraternidade feminina. E eu sabia que, quando elas se levantassem, a briga iria começar. Então, existia essa intensidade, essa coisa meio entre amor e ódio, esse cuidado na vida uma da outra. Essa cena na cama é um símbolo muito marcante. Eu acredito que foi ela a grande inspiração. Eu quero escrever sobre duas irmãs idosas.

– Como surgiu essa ideia de o Tempo ser o narrador da sua história? Por que personificar o Tempo dessa maneira tão singular?

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Acho uma decisão difícil eleger quem vai narrar a história que vai ser contada por nós. No início, quem contava a história era a Augusta. Quando eu comecei a escrever, comecei por ela. Depois de um tempo, comecei a escrever uma série. Eu desisti do livro várias vezes. E em uma das vezes que desisti, comecei a escrever uns contos, mas uns contos desordenados. A chava que não tinham uma veia em comum. Depois, fui descobrir que tinham. E, nesses contos, surgiu o tempo narrador personificado, que contava da relação dele com a menina que ele via crescer e como ele se sentia em relação a ela, e não como ela se sentia em relação a ele. E foi daí que veio: “esse tempo está tentando me dizer coisas interessantes.” Mas abandonei também essa ideia. Eu sabia que eu queria escrever essa história, tentei calar isso, e aí, na pandemia, surgiu a oficina do Assis Brasil, que era a estrutura do romance. Achei legal e resolvi fazer. Esse livro já estava me trazendo muita angústia, sabe? Foram muitos anos. Eu já não tinha nem prazer em escrever esse livro. Eu parava, porque, realmente, acho que a gente vai abrindo algumas gavetas que são complexas. E eu sempre parava. E aí, nessa oficina, Assis Brasil fez uma pergunta que eu nunca tinha escutado: “Qual é a única história que só você pode contar?” Assim, eu vi que precisava voltar para as minhas irmãs. Foi quando tomei a decisão mesmo de retornar e, para mim, foi óbvio: quem vai contar a história delas é o tempo.

Ele é um pouquinho arrogante às vezes…

Às vezes, ele é. Às vezes, ele mete os pés pelas mãos também. Às vezes, ele se emociona e se derrama naquela emoção. Eu não queria um tempo que sabe de tudo, barbudo. Por mais que ele tenha, claro, a sabedoria do tempo, ele se surpreende, ele se diverte. Ele tem sua arrogância. Eu quis me valer da linguagem, né? Quando ele fala do passado, conjuga no presente. Quando ele fala do presente, conjuga no passado. É para mostrar que ele não é linear mesmo, nem vê a vida na forma linear como a gente sente às vezes.

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– Augusta e Lia são personagens complexas, cada uma representando aspectos opostos da vida: Augusta, com seu controle e apego ao passado, e Lia, com seu desejo de viver intensamente e romper com as amarras. Durante a leitura, eu me vi oscilando entre a empatia por uma e a compreensão pela outra. Como criadora dessas personagens, você acredita que uma delas está mais próxima da sensatez? Ou ambas, com suas diferenças, refletem partes igualmente válidas da experiência humana?

Para mim, Augusta e Lia são símbolos das nossas complexidades. Elas não são somente duas pessoas que eu inventei e ponto final. Elas são símbolos das nossas contradições. Esse livro está me trazendo a questão de eu mesma pensar nele junto com os leitores. Amanhã eu posso pensar diferente. É um tipo de prisão que a gente pode experimentar na vida. Elas mesmas vão compreendendo, inclusive ao longo daquele dia estranho que elas estão vivendo, que as paralisias de uma não são maiores do que as paralisias da outra. Muitas vezes, alguém que a gente acha que é muito duro e que não vive bem a vida por isso não é tão duro assim. E, em algumas coisas da vida, vivem melhor por causa dessa dureza. Ou, então, que aquela que a gente acha muito livre, na verdade, não é tão livre assim e não consegue viver algumas coisas por conta dessa liberdade exacerbada em que ela acaba se aprisionando. Então, é tudo muito complexo. O tempo, na verdade, é que vai revelando tudo isso. Ou ele vai escondendo, a depender da relação.

– E você trata a questão do rejuvenescimento inesperado das irmãs. Qual foi o seu objetivo ao introduzi-la na trama?

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Para mim, o objetivo é difícil delimitar,  porque eu quero que cada leitor compreenda o objetivo disso, por que isso aconteceu. Então, acho que essa resposta eu não posso dar. O que eu posso dizer é de onde veio essa ideia. Esta ideia já tinha surgido, de imaginar um livro que se passa em um dia só, o que aconteceria neste dia se duas mulheres idosas se vissem dessa maneira. Primeiro, como um símbolo também, né? Às vezes, a gente olha para a vida inteira, e a juventude, comparada a esse grande bolo que é a vida inteira, é uma fatia, comparada ao resto da vida. E nós, principalmente nós mulheres, vivemos com uma pressão e uma dureza muito forte. Uma imposição de que a gente precisa viver a vida inteira como se fosse refém desse dia.  E todas nós sentimos isso. Começa a chegar a uma fase na vida e parece que o tempo tem que pesar, não tem para onde correr no nosso caso. Mas a vida é muito mais do que isso. Então, para mim, queria que fosse um livro não sobre envelhecer, mas sobre viver a vida até o fim. Dá para entender? Claro, todos temos as nossas tragédias, temos as nossas questões e, muitas vezes, é impossível, para algumas pessoas, continuar com esse gosto de viver, né?

Capa do livro – Foto: divulgação

– Você disse, em uma entrevista, que “cada livro que a gente escreve é um retrato da nossa alma naquele momento. E aquilo ali vai passar, porque a gente está o tempo todo se transformando.” As inquietações de “Para não acabar tão cedo”, em relação à passagem do tempo, também são uma questão para você?

Com certeza. Minha relação com o tempo é de muita luta para eu não ter uma boa amizade (com ele). Porque as coisas que ele diz deixa difícil encontrar quem o queira por perto, porque só queremos por perto o tempo para curar a dor da perda. Mas começamos a perceber isso quando vamos entrando na casa dos 30, e parece que tem um coro ao redor dizendo: olha aí, está começando a contar para trás o seu relógio. Mas são só 30, 40, só 50, 60. Aquilo que me foi dado. Só que fazer essa travessia no mundo e na sociedade em que vivemos, na forma em que vivemos, é muito difícil para nós e para as mulheres, principalmente. Então, o tempo todo, parece que eu também, na minha própria vida, tenho que ressignificar minha relação com o tempo. Ser mãe ressignificou muito a minha relação com o tempo, o jeito que eu quero fotografar. Parece que Vicente, meu filhinho, é a encarnação do tempo que passa. Eu vou vendo muito rapidamente o tempo passando e transformando uma pessoa, fisicamente, diante dos meus olhos. Eu não quero deixar isso passar, mas eu também quero que passe, pois desejo ver o crescimento dele. Então é uma grande questão para mim, enquanto pessoa no mundo, enquanto mulher, enquanto artista. E é algo que toca muitas pessoas, e é uma pena que não falemos muito a respeito. Uma coisa que me disseram bastante é que mulheres idosas não são muito retratadas na literatura. E de fato, não são. São muito invisibilizadas, na verdade. Na literatura, no cinema, elas não têm essa voz, não têm esse lugar. E por que não?

– Recentemente, você divulgou uma aula aberta de Escrita Criativa Contemporânea, com participação da Carla Madeira. Também compartilhou uma pequena análise crítica do escritor e jornalista Raimundo Carrero sobre “Para não acabar tão cedo.” Nele, ele destaca as qualidades literárias da sua obra, menciona que o livro surgiu na época em que você participava de uma oficina de criação literária. Enquanto alguns críticos acreditam que essas oficinas podem moldar excessivamente o autor, outros as defendem como fundamentais para o desenvolvimento criativo. Qual é a sua visão sobre essa questão? Até que ponto os cursos de criação literária influenciam ou direcionam a escrita de um autor?

Acho essa pergunta superinteressante, porque acredito que um autor e uma autora têm seu processo, e cada um sabe do seu. Algumas pessoas têm essas vozes externas interceptando seu processo criativo. Elas são abafadas por isso. Outras precisam disso para se movimentarem. Outras precisam disso pontualmente, uma vez na vida, duas vezes na vida. Pronto, isso já deu para ela uma segurança para que tenha tranquilidade para seguir a própria voz. Outras vão precisar, vão gostar, vão preferir, vão manter. As oficinas de criação literária, os cursos de escrita criativa são muito diversos, né? Você passa por muita coisa, a depender do seu desejo, das suas necessidades. Há os que são mais voltados para a técnica, outros que são focados na estrutura do romance, por exemplo. Eu acho, sinceramente, que Fernando Pessoa disse muito bem que “tudo vale a pena se a alma não é pequena.” A depender do que deseja a sua alma, você dá a ela o que ela deseja. E eu não acredito que isso é absoluto para ninguém. Vai ter o autor que pode se sentir limitado pela oficina e vai ter o autor que pode se sentir inspirado e encorajado por ela. E acho que o mercado literário tem espaço para todo mundo, dependendo da necessidade de cada autor e do processo de cada um. Ainda bem que esses cursos existem para ajudar tantos e tantas que, muitas vezes, precisam desse auxílio.

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