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Roniere Menezes: “Tanto a canção popular como a alta literatura contribuem para criarmos afeto pela outridade”

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O professora Roniere Menezes organiza “Na literatura, as canções”, publicação que tem o propósito de trazer reflexões acerca da relação entre canção popular e literatura – Foto Divulgação
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“Para mim, a canção popular também é literatura”, sentencia Roniere Menezes, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais e autor de livros da área de literatura, música e cultura brasileira. Ele é o organizador do novíssimo “As canções” (101 páginas), volume que acaba de ser lançado dentro da coleção “Na literatura”, um projeto da editora O Sexo da Palavra. Além dele, outros quatro autores – Alexandre Faria, Cássia Lopes, Miguel Jost e Sandro Ornellas – assinam os textos que integram a publicação e que “levam seus leitores a um passeio por entre as palavras e melodias da canção brasileira, no qual é possível cruzar com Chico Buarque, Tom Zé, Wally Salomão e Renato Russo, além de vários outros artistas encontrados ao longo do caminho”, destaca Maria Elisa Rodrigues Moreira, idealizadora e diretora da coleção.

“Há canções mais elaboradas, como literatura menos elaborada. A canção popular brasileira é extremamente rica em termos sonoros e literários. É uma das mais expressivas criações nacionais e cumpre importante papel de divulgação do Brasil no exterior por meio de traços bastante singulares. A canção popular, entre outros atributos, porta diversos conceitos, contribui para pensarmos nossa relação com o tempo presente e aproxima experiências de pessoas distintas quando, por exemplo, canta-se em uma roda, uma composição que ‘caiu no gosto popular’. A música popular brasileira consegue divulgar ricas invenções literárias por meio do suporte CD, rádio, TV, etc. Pode ser vista como literatura expandida”, completa Roniere, autor do texto “Cidade do samba, do rap e do funk: imagens do Rio de Janeiro em canções de Chico Buarque”.

Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Alexandre Faria assina o artigo “A presença da canção na literatura brasileira”. A professora e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia Cássia Lopes apresenta “O outro doce bárbaro: Tom Zé”.  Miguel Jost, professor colaborador da Pontifícia  Universidade Católica do Rio de Janeiro, é autor de “Da tropicália ao Gal fatal: a palavra cantada de Waly Salomão invade a cena”. E, para finalizar, Sandro Ornellas, professor da Universidade Federal da Bahia, escreve “Limiares da geração Coca-Cola: Renato Russo e os restos da transição democrática.” O epub da edição está disponível gratuitamente no site da editora, onde também é possível comprar a versão impressa.

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Marisa Loures – Qual a sua relação com a música?

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Roniere Menezes – Eu sou músico. Estudei violão durante muitos anos e ainda hoje estudo o instrumento. Também estudei canto e teoria musical na Fundação de Educação Artística, em Belo Horizonte. Na graduação em Letras, na UFMG, fui bolsista de Iniciação Científica trabalhando com a temática do rock brasileiro dos anos 1980. Como tenho graduação, mestrado, doutorado em letras, em especial na área de literatura, com estágio pós doutoral no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, sempre procuro associar minhas experiências e estudos musicais aos estudos literários. Nos últimos anos, tenho feito palestras, aulas-show, escrito ensaios e atuado como curador de exposições sobre literatura e canção.

– Na apresentação da obra, você nos lembra que, no início dos anos 2000, Chico Buarque, entre outros músicos e alguns críticos, chegou a aventar a morte da canção. Você afirma que “certamente, a canção popular como era conhecida entre os anos 1960 e 1990 não existirá mais.” E não é raro escutarmos que não se faz mais música popular brasileira como antigamente. Qual era a cara da canção popular e qual é a cara dessa nova canção popular? O que provocou essa mudança?

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– A ideia presente na apresentação do livro parte do princípio de que a chamada MPB estava mais voltada, além de canções lírico-amorosas, crônicas do cotidiano, etc, para temáticas que se ligavam à ideia do nacional-popular, a canções que se colocavam contra o sistema político vigente, à luta de classes, etc. Eram trabalhos feitos muitas vezes por jovens de classe média, em geral com formação universitária (alguns abandonaram o curso antes de concluí-lo) e relacionava-se – nas composições com o foco social –, à noção de que certa classe social poderia falar no lugar de outra. Agora, além de continuarem existindo composições dentro desse projeto, com o repertório e as riquezas presentes na chamada MPB, o escopo ampliou-se e abriram-se novas possibilidades, por exemplo, de compositores jovens da periferia gravarem suas músicas, revelarem sua percepção de mundo, suas críticas, e divulgarem-na, muitas vezes à margem das grandes gravadoras. A emergência das lutas e reivindicações das minorias, as políticas do cotidiano, recebem novos tratamentos nas criações. O aparecimento – geralmente em espaços periféricos – de novos ritmos, novas sonoridades, contribui para esse novo passo da canção no Brasil.

– E o Brasil ganhou com essa mudança…

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Como disse, foram ampliadas as oportunidades de artistas de diversos espaços apresentarem suas criações. As perspectivas ampliaram-se. Em especial quando pensamos nas relações entre canção e crítica sócio-política e nos critérios sonoros. Hoje diversas composições tratam, por exemplo, da questão negra, de modos de vida nas periferias das grandes cidades por meio do olhar do próprio homem, da própria mulher negra, por meio da experiência do morador do subúrbio. Talvez tenha ocorrido uma alteração maior quanto à harmonia, pois boa parte das composições eram influenciadas pela Bossa Nova. Mas, no conjunto, as questões rítmicas, tecnológicas, associadas à melodia e letras revelam grande riqueza. O público consumidor também passou a demandar novas produções no campo da canção popular. Além disso, tem ocorrido importantes diálogos entre compositores da chamada MPB e compositores mais jovens, que trazem novas informações, por exemplo o projeto que Criolo tem desenvolvido ao lado de Milton Nascimento.

– Alexandre Faria afirma que, “como estratégia política, significa reconhecer que parte significativa da tradição lírica no país se consolidou pela oralidade.” Por causa dessa forte cultura oral, podemos dizer que a música popular é uma grande ponte para a literatura?

Sim, o Alexandre está certíssimo. Ainda que alguns críticos, entre eles, Antonio Candido e Luiz Costa Lima, critiquem o aspecto muito oralizado da produção literária do país, principalmente os exageros verborrágicos, quando o autor quer escrever como quem declama um discurso público, devemos ter claro que, para o bem ou para o mal, a literatura brasileira está intimamente relacionada à oralidade. Os modernistas sabiam disso. Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, por exemplo, criaram ótimos poemas com base na cultura, na literatura oral. Mário chegou até mesmo a escrever um livro – publicado postumamente – intitulado “Gramatiquinha da fala brasileira”.

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– Numa entrevista concedida ao jornal Rascunho há uns anos, o poeta Eucanaã Ferraz declarou que só vê vantagens nesta confusão entre música popular e poesia. Já para a carreira literária de Vinicius de Moraes, ela foi, a certa altura, desvantajosa, porque ele foi muito esnobado pela academia e pela crítica. Isso porque ele era popular demais. Levando em conta o grande público, que vê a poesia em um patamar inalcançável, essa popularidade da canção faz com que muitos não a vejam como literatura?

Olha, eu escrevi uma tese de doutorado intitulada “O traço, a letra e a bossa: literatura e diplomacia em Cabral, Rosa e Vinicius”. A tese recebeu dois prêmios e foi publicada pela Ed. UFMG, em 2011. O pano de fundo do trabalho é o trabalho dos três escritores/ poetas durante o período JK. Algumas pessoas disseram ser um absurdo colocar em um mesmo trabalho um poeta extremamente minucioso com a linguagem, como João Cabral, e outro mais lírico, mais aberto à oralidade, ligado à canção popular, como Vinicius. Mas poucos sabem que João Cabral dizia ser Vinicius um dos poetas mais inventivos que ele conheceu. Cabral, muito ligado ao texto literário, não gostava das incursões de Vinicius no campo da música, assim como as academias de letras sempre acharam Vinicius muito ligado a uma poesia lírico-romântica, com uma linguagem às vezes fluida, menos conceitual e, além de tudo, um cancionista boêmio. Se tomarmos as obras completas de Vinicius, há ali poemas extremamente elaborados como outros mais próximos ao gosto popular e mesmo à canção infantil. Além disso, o poetinha escreveu diversas crônicas e ótimos textos para teatro. Quando escrevi a tese, percebi que, ao aproximar, por exemplo, João Cabral de Vinicius, esse comparativismo me permitia observar elementos líricos, traços de humor e mesmo de cultura popular em João Cabral como elementos de uma linguagem elaborada e mesmo temática nordestina ou do homem comum em Vinicius. Trabalhei com o conceito de “literatura menor”, ligado ao afeto que a literatura traz pela alteridade, pelos migrantes, pelos negros, etc. A literatura era pensada como relação “diplomática” com a diferença, com o “outro”. Nesse sentido, tanto a canção popular como a alta literatura contribuem para criarmos afeto pela outridade, para educar nossa sensibilidade, alterar nossas percepções de mundo. O jogo do Vinicius entre canção e literatura amplia muito o número de leitores e ouvintes que passam a ter acesso a ótimos repertórios.

– “Cidade do samba, do rap e do funk: imagens do Rio de Janeiro em canções de Chico Buarque”. Esse é o título do seu texto. Nele, você aponta que, com a maturidade, nas composições de Chico Buarque, mesclam-se “um misto de simpatia, homenagem, mas também de um crescente distanciamento crítico em relação à cidade idílica cantada por antigos sambistas cariocas”. Como a Cidade Maravilhosa e seus moradores, com todos os seus drama e alegrias, são apresentados nas canções buarqueanas? O que mudou se compararmos o hoje com as décadas de 1960 e 1970?

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– Tratando rapidamente, até mesmo para incentivar a leitura não só de meu ensaio como dos outros textos do livro, nota-se uma diferença entre a forma como Chico Buarque tem abordado a cidade do Rio de Janeiro em suas últimas canções, como “Subúrbio” e “As caravanas”, e a forma como a cidade foi cantada em “verso e prosa” como “cidade maravilhosa”, com os seus morros abordados de forma quase utópicas, como em “Ave Maria do Morro”, de Herivelto Martins. Em “Subúrbio”, a cidade é descrita pelo que não tem, pelo que falta: “ “Lá não tem brisa/ Não tem verde-azuis/ Não tem frescura nem atrevimento/ Lá não figura no mapa”, “Lá não tem moças douradas”, “lá não tem claro-escuro/ A luz é dura/ A chapa é quente”. Em “As caravanas”, cito um trecho do ensaio: “por meio de denúncia, ironia, o sujeito lírico desvela o paradoxo entre medo e desejo, entre o ódio covarde – da “gente ordeira e virtuosa” que pede pra polícia despachar de volta o populacho intruso “pra favela/ ou pra Benguela, ou pra Guiné”, que manda bater, matar os “estrangeiros” – e o encantamento pelos “negros torsos nus”. Nesse sentido, há uma diferença entre o tom lírico e mesmo político de denúncia social já presentes nas canções dos anos 1960 e 1970 e as composições atuais. As letras de tonalidade política, sem perder a poeticidade, passam a apresentar uma linguagem mais crua e incisiva ao interpelar os aparentes diálogos sociais e raciais do país, ao questionar a própria noção de vida republicana que, de fato, nunca existiu entre nós.

Sala de Leitura – Toda sexta-feira, às 11h35, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,30)

“Na literatura, as canções”

Organizador: Roniere Menezes

Textos de Roniere Menezes, Alexandre Faria, Cássia Lopes, Miguel Jost e Sandro Ornellas

Editora: O Sexo da Palavra (101 páginas)

O epub da edição está disponível gratuitamente no site da editora O Sexo da Palavra, onde também é possível comprar a versão impressa.

 

                       

 

 

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