Lígia liga o som, vai para a varanda do seu apartamento de quinto andar, acende um cigarro e contempla a área de lazer vazia. Olha, mas não vê. Não percebe quando um vizinho, do bloco da frente, sentado no parapeito da janela, pula. Nunca foram amigos. Ela nem sabia quem ele era e qual era o seu nome. Contudo, é considerada a única testemunha do caso. A partir daí, a arquiteta vai atrás da história desse homem morto e se encanta por ele. E o leitor, ao lado dela. Preso, sem conseguir tirar os olhos do texto. Nesse mergulho na vida do outro, Lígia “se apega ainda mais à ideia do próprio suicídio”. Átimo” (Instante, 184 páginas) marca a feliz estreia do dramaturgo e diretor paulista Kiko Rieser no gênero romance.
“A princípio, Lígia se identifica profundamente com Cássio, ainda que de forma pouco consciente, e tenta entender a vida e a morte de um homem que jamais conhecerá. Quanto mais se embrenha nos vestígios que encontra, mais ela se vê nos cacos que tenta juntar. No entanto, ela só percebe isso bem mais tarde, levando-a a tomar a decisão que enseja o ponto de virada do final do livro”, conta o escritor, que, em sua nova obra, reflete não só sobre a vida e a morte, mas temas, como a solidão urbana, as falsas aparências e o apego ao passado.
“Lígia é uma jovem arquiteta que poderia ser nossa vizinha. Frequenta a mesma cena cultural, lê os mesmos livros, compartilha de nossas afinidades eletivas”, aponta, na quarta capa, o escritor Santiago Nazarian, para quem “’Átimo’ é um romance de estreia que revela um universo tipicamente paulistano, algo que se vê com uma frequência curiosamente rara. Passeando por cenários, citações, autores e personagens tão reconhecíveis, a protagonista ganha uma forte aura simbólica, numa narrativa delicada e feminina.”
Kiko também é autor do livro “Lapsos” (poemas, editora Patuá) e começa a preparar um próximo livro de poesias, já intitulado “De osso e risco.” Dentro do romance, esboça “Além da rebentação”. A lista completa das livrarias em que “Átimo” está sendo vendido está disponível no site da editora Instante (editorainstante.com.br), onde a obra também é comercializada. Formado em Artes Cênicas pela ECA/USP, o escritor escreveu e dirigiu o curta-metragem “Deixe a porta aberta ao sair” e realizou diversos espetáculos teatrais.
Marisa Loures – A protagonista do seu livro faz a seguinte reflexão: “Não consigo acreditar que exista alguém que nunca tenha pensado seriamente em dar adeus à vida.” “Átimo” traz algo de suas próprias vivências ou de vivências de pessoas próxima a você?
Kiko Rieser – O livro não é, de forma alguma, autobiográfico. No entanto, sem dúvida, a protagonista, Lígia, tem muito de mim, inclusive em seus flertes com a morte. Vi, e ainda vejo, diversas pessoas ao meu redor tendo desejos ou até impulsos suicidas. É algo bastante íntimo e, por isso, pouco falado, mas, quando o tema vem à tona em alguma situação em que haja conforto para ser tratado com franqueza, o número de pessoas que admitem ter ao menos uma vez cogitado a hipótese de dar cabo da própria vida é muito maior do que se possa imaginar.
– Morando em uma metrópole como São Paulo, Ligia vive só. O escritor Santiago Nazarian diz que ela “poderia ser nossa vizinha. Frequenta a mesma cena cultural, lê os mesmos livros, compartilha de nossas afinidades.” Pode-se dizer que ela simboliza essas pessoas que, embora demonstrem estar bem, vivem solitárias, sofrendo, em meio ao caos de uma grande cidade?
– A metrópole é, desde há muito, um símbolo de pessoas que estão sozinhas na multidão. No entanto, essa realidade talvez tenha se ampliado recentemente para além do ambiente urbano, por meio das redes sociais, que permitem um grau de comunicação instantâneo e nas quais quase sempre expressamos humores e condições de vida bem mais solares do que os reais. Nesse sentido, embora Lígia seja mais facilmente identificável por quem vive em uma grande cidade, ainda mais São Paulo, que é o cenário do livro, ela é um personagem que pode encontrar eco em pessoas de toda parte.
– A pesquisa Mapa da Violência do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, revela que a taxa de suicídio na população brasileira entre 15 e 29 anos aumentou 10% entre os anos de 2002 e 2014. O suicídio, inclusive, é assunto da famosa série “13 reasons why”, do Netflix. Embora o tema esteja em evidência, ele ainda é tabu na nossa sociedade. No jornalismo, por exemplo, evita-se noticiá-lo. Por que explorar o suicídio na sua ficção?
– Acredito, na verdade, que o suicídio ainda é pouco tratado nas artes, ao menos de maneira frontal. Ele é pano de fundo para diversas obras, mas raramente é tema principal. Quando o é, muitas vezes é colocado como uma tentativa malograda de um personagem que, com isso, descobre o valor da vida, num happy end moralizante. A série “13 reasons why” tem tido tanta repercussão, creio, justamente por ser uma exceção, por ser uma obra que aborda o assunto de forma aberta e não superficial. Ainda que a série seja parte de um programa de prevenção ao suicídio e venha acompanhada de vídeos instrutivos nesse sentido, não há, na ação dramática, lições de moral. Justamente por ter ainda pouco espaço nas artes, por ser algo com que quase todas as pessoas flertam em algum momento e por ser um tabu no jornalismo e em toda a sociedade, acho de grande importância explorar esse tema em “Átimo”.
– Por falar em “13 reasons why”, há quem considera uma irresponsabilidade falar sobre o tema, porque se acredita que poderia ser uma forma de estimular o suicídio. Em algum momento, você ficou com receio de seu livro ser criticado, julgado como um produto que influencia negativamente o público leitor?
– Nunca me preocupei, em trabalho nenhum, com qualquer tipo de julgamento moralista que pudesse advir de alguma parcela do público. Minha preocupação sempre foi a de abrir as possibilidades de significação de uma obra sem entregar respostas. Deste modo, “Átimo” não faz nem apologia ao suicídio nem busca recriminá-lo. Quem considera que é irresponsável falar sobre o tema, na verdade, busca doutrinações salvacionistas, não uma obra de arte. Há todo um segmento do mercado editorial voltado a esse tipo de aconselhamento, mais indicado para atender a pessoas que busquem respostas reconfortantes.
– Essa apropriação do tema pela arte e a literatura pode ser benéfica para desmistificar algumas estruturas?
– Acredito profundamente na função que a arte tem de propor novos olhares, ressignificar a realidade, questionar paradigmas e desconstruir o que nos é culturalmente naturalizado. Isso é, antes de tudo, provocar autonomia e espírito crítico em todas as pessoas, o que, claro, é capaz de mudar estruturas de toda ordem.
– Seu livro busca encontrar explicações para o suicídio?
– Ao contrário. Busco justamente mostrar que as razões do suicídio podem ser múltiplas e insondáveis. O senso comum costuma buscar motivos unívocos para o suicídio, e muitas vezes eles atendem a diversas conveniências e padrões sociais. Um bom exemplo disso é a trajetória da escritora Constance Fenimore Woolson. Desde sua morte, em 1894, dizia-se que ela havia se suicidado por ter amado de forma não correspondida seu amigo, o escritor Henry James. Apenas em 2016, uma voz questionou isso oficialmente, quando sua biógrafa, Anne Boyd Rioux, afirmou o óbvio: que há diversas razões para uma mulher se matar que não o amor por um homem.
“Átimo”
Autor: Kiko Rieser
Editora: Instante (184 páginas)