Todo mundo já foi criança um dia e se deliciou com as histórias de Pedro Bandeira. E também aprendeu, através de seus livros, conceitos importantes para a vida, como regras de convivência e respeito ao diferente. São mais de cem obras em catálogo e mais de 20 milhões de exemplares vendidos. Ele sabe falar diretamente para cada faixa etária. Na sua última investida, “Esses bichos maluquinhos!” (Moderna), o autor dialoga com os bem pequeninos, aqueles que estão entrando no universo da alfabetização.
O livro é uma fábula escrita em rimas e desperta a imaginação da meninada com bichos vivendo situações que não são comuns ao universo dos animais. Tem um elefante que adora cheirar tudo, um macaco dançarino que usa meias com chulé e até uma lagartixa que, depois de procurar alguém para se casar, encontra amor em um jacaré. A exemplo de outros títulos do escritor, essa publicação tem a proposta de despertar o envolvimento da criança pela leitura.
“Eu preciso conquistar meus leitores, preciso que eles gostem de ler, porque todo o conhecimento está escrito e não é só no livro. Pode estar escrito na tela de cristal líquido, pode estar na nuvem, mas está todo escrito. Se ele não compreender bem a língua portuguesa, qual a chance de futuro ele terá? Se ele lê mal, ele vai ser infeliz, não vai poder fazer um bom curso, vai ganhar pouquinho, vai ter dificuldade na vida. E eu não quero que ele tenha dificuldade, porque, se ele vencer, ele vai ajudar o Brasil a vencer”, dispara o escritor, que deu um presente, também, para os adultos.
Sei que a semana é das crianças, mas não posso deixar de conversar com Pedro Bandeira sobre “Melodia mortal – Sherlock Holmes investiga as mortes de gênios da música” (Rocco). Escrita em parceria com o médico e amigo Guido Carlos Levi, a obra acabou de ir para as prateleiras e é a primeira de Bandeira direcionada aos mais crescidos. Tenho que contar que, até ele, está surpreso com a novidade. Também não posso deixar de confidenciar que, ao atender ao telefone, ele me agradeceu por ter me lembrado do velho Pedro Bandeira. Contudo, nós é que temos que agradecer. Obrigada, Pedro, por nos dar, há mais de 40 anos, motivos para acreditarmos no poder transformador dos livros.
“Eu preciso conquistar meus leitores, preciso que eles gostem de ler, porque todo o conhecimento está escrito e não é só no livro. Pode estar escrito na tela de cristal líquido, pode estar na nuvem, mas está todo escrito. Se ele não compreender bem a língua portuguesa, qual a chance de futuro ele terá? Se ele lê mal, ele vai ser infeliz, não vai poder fazer um bom curso, vai ganhar pouquinho, vai ter dificuldade na vida. E eu não quero que ele tenha dificuldade, porque, se ele vencer, ele vai ajudar o Brasil a vencer”, dispara o escritor, que deu um presente, também, para os adultos.
Marisa Loures – No livro “Esses bichos maluquinhos”, você dialoga com crianças que estão em fase de alfabetização através da sonoridade das palavras. Esse é o pulo do gato para se conquistar o leitor?
Pedro Bandeira – Ando muito preocupado com os problemas da alfabetização no Brasil. Nós conseguimos ter crianças que saem da escola lendo mal, não entendem o que leem. Pelas pesquisas, de todas as pessoas que se dizem alfabetizadas, só um quarto delas consegue entender um texto. Isso é horrível. Nós precisamos lutar com isso a partir das casas e da escola. É desde pequenininho que você tem que fazer a criança se interessar pela compreensão leitora, porque, alfabetização em si, significa o entendimento da língua. A criança pode saber que “B” com “A” dá “Ba”, mas ela não entendeu o que está lendo. Isso se chama letramento. Então, quero escrever para essa criança que está nessa fase de alfabetização ou está chegando lá. Como é essa criança? Como eu me comunico com ela de modo que ela goste do que está ouvindo ou do que está lendo? Em primeiro lugar, é melhor você fazer um texto rimado, como na poesia. A prosa é de mais difícil compreensão, a criança que está aprendendo a ler pode pular um ponto em que devia respirar, chegar ao fim, ler todas as sílabas, mas não ter entendido nada. A poesia já traz a musicalidade natural da língua falada, a respiração normal do ser humano. Então, em primeiro lugar, a poesia. Segundo: é bom que essas histórias tenham um humor, façam a criança rir, porque, se ela rir, é um meio passo para ela gostar do que está lendo. E o que é humor para uma criança pequena? Uma piada é baseada numa ironia, e a criança pequena não entende a ironia, né? Então o que faz uma criança deste tamanho rir? Quem é o ser humano deste tamanho? Ele está lutando com uma série de amadurecimentos fisiológicos, está tentando largar as fraldas, está tentando não chupar os dedos, está controlando para não molhar a cama à noite. O engraçado para ele são coisas ligadas a esses processos. Por isso, tive que fazer historinhas bem curtinhas, muito bem ritmadas, com todos os poemas com o mesmo ritmo, com a mesma métrica e usando bichinhos. Se você conta que a mamãe galinha chegou para o pintinho e disse assim, ele entende perfeitamente, porque ele imagina a mamãe galinha como “minha mãe” e o pintinho “como eu”. E sempre colocar no finalzinho uma piadinha: Pum, bumbum. Meleca, chulé. Eles morrem de rir dessas coisas, e eu preciso conquistar a criança.
“Por que uma lagartixa não pode se casar com um guarda-chuva? A criança tem que estar aberta. Nós, adultos, preconceituosos, é que botamos preconceito na cabecinha delas. A criança aceita todo mundo. A criança brinca com menino de cor de pele diferente e, para ela, não tem nenhuma diferença. O adulto é que começa a jogar que isso é feio.”
– Em 2015, conversamos em virtude de uma adaptação do seu livro “É proibido miar” pela Companhia de Atores Estação Palco. Na época, você ressaltou a importância de se trabalhar as diferenças com as crianças e disse que, talvez, “É proibido miar” seja um símbolo de quase todos seus livros. Nesse novo lançamento, a questão de aceitar o diferente está de volta, por exemplo, quando uma lagartixa encontra amor em um jacaré…
– Por que uma lagartixa não pode se casar com um guarda-chuva? A criança tem que estar aberta. Nós, adultos, preconceituosos, é que botamos preconceito na cabecinha delas. A criança aceita todo mundo. A criança brinca com menino de cor de pele diferente e, para ela, não tem nenhuma diferença. O adulto é que começa a jogar que isso é feio. O escritor tem que seguir a criança como ela é. Gosto muito desta história “É proibido miar”, porque mostro qualquer tipo de preconceito através, também, de uma fábula: um cachorrinho que fica amigo de um gato, resolve imitá-lo e começa miar. Todo mundo briga com ele. Quando escrevi essa história, na época da Ditadura Militar, um amigo meu leu e falou :“muito bem, Pedro, você fez uma fábula sobre nossos amigos que, por terem ideias diferentes, foram presos pela ditadura”. Respondi que fiz. Aí uma sobrinha minha, já adolescente, falou: “Tio, você fez uma fábula sobre homossexualidade.” Falei: “Fiz”. Serve para qualquer coisa. Você tem que aceitar o diferente. Então, trabalho não só a compreensão leitora, como conceitos sociais importantes de convivência, de cidadania, de ética, de aceitação. O menino não notou que o outro menino é gordo e faz bullying porque mandaram fazer, sem maldade. Se ele tiver sentido literariamente uma historia que ele ouviu a mamãe e a professora lerem, talvez ele não entre na jogada do preconceito, destas maldadezinhas, porque a criança tem umas maldades também, ela é mais franca, goza um menino que fez uma coisa errada. A gente tem que trabalhar a aceitação do outro para que ele também seja aceito.
“Se três quartos dos adultos que se dizem alfabetizados não entendem um texto curto, é claro que eles não vão dar livros nem contar histórias. Três quartos das crianças deste Brasil não têm essa oportunidade em casa. Então, sobrou para a escola. E a escola de hoje está assoberbada, ela tem muitas obrigações, tem que fazer aquilo que as casas não fazem. É muito difícil, para uma professora, substituir as famílias das crianças.”
– Parece que, quando pequenas, as crianças se encantam com a leveza do texto, o colorido das ilustrações e situações simples em que os personagens estão envolvidos. Depois disso, a reclamação dos pais é que essas mesmas crianças crescem e não se interessam mais pelo universo dos livros. O que acontece com elas?
– Se você, desde pequenininha, no colo da mamãe, ouviu mamãe contar história, a vovó contar história, o papai contar história, você já está introduzido e gostando daquilo. Não é mais tarde que você vai deixar de gostar. A criança que não gosta um pouco mais velha é porque não foi introduzida. Por isso acho importante trabalhar isso desde o comecinho. Se eu ganhar uma criança a partir dos quatro anos, é muito provável que ela sempre vá procurar um livrinho para se divertir. Mas, não é só família pobre não, é família rica, que não tem esse hábito em casa. O menino nunca viu mamãe lendo um romance, papai lendo um romance. Não há livros na casa dele, ele nunca ganhou livro de presente, ele nunca ficou no colo ouvindo uma história. A culpa não é dele, a culpa é nossa, da educação que nós damos. Temos que vestir essa máscara. Sempre foi assim, o Brasil nunca foi um país leitor. Se três quartos dos adultos que se dizem alfabetizados não entendem um texto curto, é claro que eles não vão dar livros nem contar histórias. Três quartos das crianças deste Brasil não têm essa oportunidade em casa. Então, sobrou para a escola. E a escola de hoje está assoberbada, ela tem muitas obrigações, tem que fazer aquilo que as casas não fazem. É muito difícil, para uma professora, substituir as famílias das crianças. Viajo muito, converso muito com professores. Outro dia eu estava conversando com uma professora do Rio Grande do Sul, e ela me disse que é muito comum a criança chegar para ela e falar: “Tia, me dá colinho, passa a mão no meu cabelo?” Significa que ninguém dá colinho para ela em casa, ninguém passa a mão no cabelinho dela em casa. Essa criança já está nascendo com uma carência de afeto brutal. Como é que a professora vai botar 30 alunos no colo ao mesmo tempo? O nosso problema é nosso, é da nossa cultura, do que as nossas famílias fazem. A escola não faz tudo. Quero que esse meu livrinho comece a ser apresentado pelas famílias, não é esperar só a professora. É uma luta que eu travo já há mais de 40 anos, mas acho que é uma boa luta. Um pouco vai melhorando, não tanto quanto eu gostaria.
– Pedro Bandeira acabou de estrear na literatura voltada para o público adulto com o livro “Melodia mortal”. Por que entrar nesse universo depois de tantos anos lidando com os pequenos?
– Até eu mesmo achei graça. Na verdade, estou trabalhando os poeminhas já faz tempo, porque poeminha é algo demorado, pesquisado, pensado. Pelo menos há uns três anos venho escolhendo, pensando nisso. De repente, veio esse desafio dessa história. Eu, como sempre gostei, na juventude, do Sherlock Holmes, eu me diverti muito, escrevendo. Reli o Sherlock, e o gostoso é que todas as histórias são narradas em primeira pessoa por um amigo dele, que é o Watson. São os olhos dele que estão vendo essa história. Então, eu tenho que escrever como se ele estivesse vendo a aventura e narrando. Isso é um desafio muito bom do ponto de vista formal, técnico. Você está escrevendo por outra pessoa, que não é você, não é minha maneira de ver. Ele exagera o talento do Sherlock, tudo o que o Sherlock diz é maravilhoso, é genial, porque ele pensa assim. Esse tipo de coisa é uma forma de humor, é muito divertida. É bacana ser escritor por causa disso. Você não fica simplesmente contando qualquer coisa, você depende de quem está contando, de como você conta, de qual o ângulo você está vendo a história.
– E de onde veio a ideia de investigar as mortes dos gênios da música?
– Meu parceiro é um grande médico de São Paulo e também é amante de música clássica. Uma vez, fazendo exercício juntos, ele começou a falar: “Pedro, andei vendo certas mortes que são ditas aí de compositores famosos, e eu, como médico, com a medicina de hoje, olhei e achei que não era isso. Por exemplo, dizem que o Beethoven morreu de sífilis, mas os dados que descrevem a morte dele não apontam para sífilis. Aí fui pesquisar e descobri que ele morreu de beber, morreu de cirrose. Enchia a cara e fazia aquelas maravilhas. Disseram que o Tchaikovsky foi envenenado, mas não, morreu de cólera. O Chopin não morreu de tuberculose.”
– Foi preciso acionar seu lado jornalista para checar dados…
– É verdade, mas hoje é tão fácil. Quando fui jornalista, na década de 1960, não havia internet, tudo você tinha que achar um jeito de pesquisar em arquivo, recorte de jornal. Era uma loucura. Hoje é fácil, você vai no Google e está tudo lá. Hoje você pesquisa e descobre qual era o bar em que os veteranos da guerra, em Londres, no ano de 1850, se reuniam. Você sabe até o endereço do bar. Se fosse na década de 60, quando é que eu poderia descobrir isso? Hoje a vida está bem mais fácil, viu? Lembro quando, em 1963, eu estava na redação, quando veio, por telex, que o presidente kennedy foi assassinado. Aí corre, fecha a porta da redação e vai fazer uma edição extra. Como você fazia uma edição extra de repente se só tínhamos essa informação? Aí vai procurar arquivos, abrir aquelas gavetas de ferro, procurar recortes, fazer uma cozinha rápida da biografia dele. Conseguimos sair em poucas horas. Era muito romântico.
– E você foi, ao mesmo tempo, em dois extremos: os bem pequeninos e os adultos. A experiência com o livro infantil te inspirou no livro adulto?
– Controlar a língua, compreender bem a língua e usá-la com facilidade, é um desafio para até o último dia da minha vida. Você sempre vai descobrir coisas novas, um jeito mais interessante de jogar uma ideia, onde você deve enxugar para o livro ficar pulando de gostoso de ler. Eu tenho conseguido isso. Livros antigos vendem mais hoje do que quando foram lançados. Nem todos os meninos estão lendo, porque o pai não sabe ler, o pai lê mal. Por isso o Brasil é um país atrasado. Mas acho que está melhorando, os meninos leem mais hoje do que seu pai lia e seus avós liam. Recebo e-mails maravilhosos. Recebi um poeminha de uma criança de sétimo ano, tem uns 12 anos por aí. Precisa ver que gracinha. Eu não escrevia assim com 12 anos, é uma maravilha. Ele fez tudo rimadinho para comentar um livro meu, pouco falhou na redondilha, na cadência do verso. Está bem melhor. Ficamos pessimistas, mas não fiquemos não. A gente não vai resolver do dia para a noite todos os nossos problemas, mas que estamos avançando, estamos avançando.
“Esses bichos maluquinhos!”
Autor: Pedro Bandeira
Ilustrador: Adilson Farias
Editora: Moderna (40 páginas)
“Melodia mortal – Sherlock Holmes investiga as mortes de gênios da música”
Autores: Pedro Bandeira e Guido Carlos Levi
Editora: Rocco (240 páginas)