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‘Não quero contar uma história, quero contar um assombro’

O professor e poeta Alexandre Faria reflete sobre a promiscuidade entre o crime e o poder no Rio de Janeiro em “Agóleo: um romance instagrâmico” (Foto: Divulgação). O lançamento ocorre na próxima terça, na Autoria
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O poeta e professor Alexandre Faria sempre dá aula quando escreve, e ele faz isso mais uma vez. Foi o que disse a ele quando conversamos sobre “Agóleo: um romance instagrâmico” (TextoTerritório), livro que ele lança, em Juiz de Fora, na próxima terça-feira (11), e no Rio de Janeiro, no próximo sábado (15). Ao longo das páginas, encontramos momentos narrativos, construídos como se fossem reels de Instagram, entremeados por poemas, que estão ali como se fossem postagens, comentários que vão problematizando as questões que foram postas nas cenas. E, para deixar a obra ainda mais instigante, o autor escolhe, como narradora dessa história, que se passa em 40 anos, Inácia Nonata, uma menina que não nasceu.

“É uma questão para mim, como escritor, problematizar o romance tradicional, como uma narrativa tradicional. Eu já faço isso no ‘Anacrônicas’. Há uma história sendo contatada, mas penso na maneira de contar essa história na própria vida, que não é linear, que não é acabada, que é sujeita a estabilidades, aos desmandos da própria ordem pública”, afirma o escritor, que teve o cordel “Quem matou Aparecida”, de Ferreira Gullar, como inspiração inicial para “Agóleo”.

 A narrativa começa na década de 1960, com um grande saque, e termina em 2023, com a invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília.  Por meio dela e dos poemas, o poeta leva o leitor a refletir sobre a promiscuidade existente entre o crime e o poder no Rio de Janeiro. Aliás, a cidade natal de Alexandre ainda está presente no livro de contos “Copacabana e outros subúrbios”, publicado recentemente e também assunto desta entrevista.

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Em Juiz de Fora, o lançamento de “Agóleo” ocorre na próxima terça-feira, às 19h, na Autoria Casa de Cultura.

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Marisa  Loures – Água e óleo não se misturam, mas no seu livro essa mistura ocorre. Como é isso?

Alexandre Faria – A ideia do “Agóleo” nasce da famosa frase de Lúcio Flávio, que, ao ser preso, vai fazer uma denúncia a respeito da polícia corrupta, que dividia o roubo dos bancos junto com ele, e ele diz: “eu faço o que o bandido faz, mas a polícia não. Bandido é bandido e polícia é polícia, e eles não podem se misturar como água e óleo.” Assim, eu faço uma denúncia de que eles se misturam sim e tento levar essa mistura para a proposta do livro, que mistura prosa e poesia e tem um fundo narrativo. 

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– “Agóleo” é dividido em partes e você inicia cada uma delas com um trecho de uma história. Queria que você falasse sobre essa estrutura do livro. Do poema, vai para a prosa. Da prosa, vai para o poema. Como escrito na orelha do livro, parece uma roda que não gira. A própria estrutura do livro permite essa reflexão…

Acho que denuncio uma água parada, uma roda que não gira dentro de um determinado parâmetro ético, porque essa roda gira na mão dos assassinos, igual a uma roleta russa, com balas perdidas, mortes encomendadas. Essa roda gira com dinheiro, com interesses privados se sobrepondo aos interesses públicos. Há uma crise do Estado. Então, é uma sensação de que alguma dimensão da ética, da lei, não gira. Mas o capital está girando. 

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– Quando você faz esse trabalho, misturando os poemas com a prosa, acaba nos permitindo ler ou só o romance, ou só os poemas. E só lá na frente é que o leitor descobre que se trata de um romance. E aqueles que ficam muito instigados pela narrativa, como é o meu caso, podem ficar tentados a pular direto para os próximos episódios a fim de descobrir como a história continua…

Eu consigo isso até porque não dou uma linearidade para as cenas. Elas têm uma datação. É tudo demarcado no tempo, mas, ao mesmo tempo, elas não aparecem na ordem. Eu acho que elas vão se organizando na cabeça do leitor na medida em que acontece a leitura. 

(Foto: Divulgação)

– Quando eu li a primeira parte da narrativa, a do homem negro com a língua cortada na universidade, fiquei pensando se era ou não um fato real…

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É um fato real. Tem muita coisa inventada, tem muita coisa que é referenciada. Eu não vivi esses casos. Esse caso específico do homem que vai à sala, eu vivi. É memória pura. Então, tem uma vivência junto à favela, o trabalho em pré-vestibular comunitário, uma vivência da periferia do Rio de Janeiro, do subúrbio, da favela. O caso do menino queimado dentro dos pneus é memória, e, ao mesmo tempo, há outros fatos absolutamente hipotéticos, inventados. O encontro do Lúcia Flávio com a vó Maria, quando ele dá uma nota de cem ou duzentos cruzeiros para ela, é uma invenção. Eu não sei a data em que ele saiu do Rio e fugiu para Belo Horizonte, mas foi ali naquela época. Então, eu tentei localizar algumas coisas no sentido de criar uma verossimilhança e uma sequência descontínua de universos diferentes, mas meio que, cercados, cada unidade do livro, ele se coloca no lugar da personagem narradora, que é a Inácia Nonata, a menina que não nasceu. Diz lá no início que ela faria Filosofia, Medicina, Letras, Direito. Então, tem uma série de saberes superiores, universitários, que dão os limites para cada uma das partes. Uma acontece nas Letras, outra na Medicina, entre os doutores ou futuros doutores, outra dentro de percepção mais filosófica, existencial e ética do mundo. Então, cada parte eu tentei mediar por essas relações. 

– E por que uma narradora não nascida? Logo pensei no defunto-autor do Machado de Assis. 

Eu não sei, mas pode ser uma referência. Voluntariamente, você está me dizendo isso agora e pode ser bom que se veja essa referência. A parte densa, mais difícil do livro, para mim, é justamente o suicídio da Aparecida na Uerj, e isso é uma notícia. Eu estudei na Uerj um tempo, e, de repente, chegava para a gente essas notícias de que alguém havia se matado. Muitas não sabíamos quem eram ou deixavam de ser. Mas tem um traço de memória e um fato que é pouco noticiado. Acho que esse suicídio foi o que me levou a uma ideia não dessa narradora que morreu, mas de alguém que poderia ser fruto dela. No final, a avó diz: minha neta poderia ser slammer se tivesse nascido, mas teve uma interrupção ali por uma decisão limítrofe da personagem, e uma omissão do sujeito que aparece falando na Cinelândia no dia da eleição do Lula. Então, é uma forma de omissão para com esses corpos que morrem.

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– “Agóleo” é um livro sobre o Rio de Janeiro. “Copacabana e outros subúrbios” também é sobre o Rio. Eles nascem por causa da saudade que você, carioca, tem da sua cidade?

É curioso, pois o “Agóleo” vem sendo gestado desde 2022 e eram umas ideias soltas e, de repente, essas ideias foram ganhando forma, e “Copacabana” é um conjunto de contos. Alguns já publicados, inclusive um saiu até na Tribuna. Outro saiu em um livro em Portugal, e outros inéditos que estavam guardados. Diria que minhas últimas idas ao Rio foram muito angustiantes, talvez pelo tempo que tenho passado mais por aqui. Então, há um estranhamento dessa dinâmica da violência na cidade, uma dor de ver certos projetos de cidadania e de urbanização simplesmente dando errado e virando ruína. Uma sensação, um desconforto de estranhamento de uma cidade que era muito minha. Isso foi gestando “Agóleo” e, de repente, eu queria mais fluxo à minha carreira literária, sabe? Não quero mais ser o professor que escreve e sim quero ser escritor que é professor. Assim, resolvi juntar os contos e, de repente, o título “Copacabana e outros subúrbios”, também relacionado a esse sentimento em relação à cidade, surgiu e surgiu como uma grande unidade para os contos. E investi nessa ideia e, de fato, são dois livros cariocas, embora o “Agóleo” tenha uma dimensão de uma ética, de uma relação com a lei que está no Brasil. As referências são muito cariocas, o cenário do livro é o Rio de Janeiro. 

Capas dos livros “Copacabana e outros subúrbios” e “Agóleo”

– “Agóleo” traz um Rio onde existe uma promiscuidade entre o crime e o poder. Como fica sua relação com a cidade? É feliz com ela? E é dever do poeta, que é do Rio de Janeiro, refletir sobre os problemas que ela enfrenta?

Acho que é um dever refletir sobre esse problema, que é ético, sabe? Que é das pessoas, não é das cidades. Acho que é um problema ligado à maneira como nós nos relacionamos com a coisa pública, com esse tipo de percepção que temos da lei e da própria vida coletiva, sabe? Agora, eu acho que eu tenho relações com as cidades em que eu vivi, embora o Rio tenha sido a que eu passei mais tempo e a que eu passei uma fase importante da minha vida, que foi minha formação. Nasci no Rio e morei uma parte da infância em Brasília. Morei em Brasília entre 8 e 14 anos. Então, Brasília tem uma coisa comigo também. Você me pergunta se eu sou feliz com a minha cidade. Se a gente for buscar motivos para ser feliz, fica mais difícil, entendeu? A cidade acaba sendo um certo lugar que eu privilegio para pensar essas relações humanas. Sou uma pessoa profundamente ligada à experiência urbana. Não entendo nada de campo. Vou para Ibitipoca e não me identifico com aquilo. Vou a São Paulo e acho maravilhoso. Eu tenho uma relação com as cidades, com a própria ideia da experiência urbana como esse lugar de encontros, como um lugar aonde a gente vai experimentar os nossos limites existenciais, os encontros e desencontros possíveis que a cidade nos possibilita. E uma cidade que é urbe, que é um espaço denso, urbano, mas que está muito longe de ser polis, que está muito longe de ser cívica, de ser uma cidade democrática, de ser uma cidade dos direitos. Isso é qualquer cidade do mundo capitalista.

– Em um de seus poemas, você escreve assim: “Quem matou?/Quem mandou matar?/ […] Tudo começou/ Com o barão de Drummond.” Nesse ponto, eu me lembrei do assassinato de Marielle Franco. É fato que um crime como esse não é um episódio isolado da nossa história, e seu livro procura pensar saídas de superação para os impasses da desigualdade no Brasil. Existem saídas?

Existem. Acho que o contraponto de todo um saber acadêmico, universitário, e que perpassa as partes do livro, é a vó Maria. Uma pessoa do povo, extremamente consciente politicamente, uma pessoa que consegue associar a sua experiência de vida à realidade política, econômica e social. A valorização desses saberes, a valorização dessas vozes que são silenciadas. A Aparecida deixa uma espécie de manifesto, é uma menina que não conseguiu passar no vestibular, frequentava a faculdade, mas não era uma aluna regular, matriculada, e opera com o saber. Ela deixa um manifesto que recoloca os saberes e os valores como saída. Mas quem a gente ouve e em quem a gente acredita, né? Quem nos convence de alguma coisa em relação à nossa vida, em relação ao compartilhamento do nosso espaço de convivência, que é a cidade? Está cada um por si e aí não adianta formular trabalhos de filosofia, de sociologia, do que quer que seja, porque é um saber da humanidade. É um saber daquilo que nos toca e que nos faz iguais com as nossas diferenças. E me parece que o que a gente vive hoje no Brasil, essa ascensão de uma extrema direita, se dá muito pela complacência de pessoas que estão pensando em si, pensando no seu mundo, e que acabam perdendo também. Todos perdem para favorecer uma minoria, para favorecer um grupo que está gestando o próprio capital, as próprias saídas. Então, tem uma lógica da solidariedade que se vê perdida. Mas tem saída? Tem. A saída é justamente o princípio de solidariedade, de compartilhamento do possível, com as nossas diferenças todas. 

– Você disse que quer cada vez mais deixar de ser um professor que escreve. Quer ser um escritor professor. “Agóleo” é um livro engajado e necessário. Fico pensando se ele conseguiria fazer a roda girar, porque, infelizmente, trata de temas com os quais apenas pessoas que pensam como você se identificam. Ou seja, quem precisa mesmo de lê-lo, provavelmente, não o fará. Também é um livro que exige do leitor. Você faz várias citações. A pessoa precisa ter repertório, e, muitas vezes, não tem. Como é ser escritor diante desse cenário? Além disso, como é ser escritor, pensando que você vai escrever para as mesmas pessoas, aquelas que pensam como você?

É uma questão importante para mim também. Eu comecei o livro a partir de um cordel. Isso indica que eu estava buscando uma dicção mais popular, mas, ao mesmo tempo, me parece proselitismo fazer esse “romanção”, fazer isso que chega a um leitor e consola o leitor, sabe? Eu não quero ser um escritor que dá nada. Também não quero ser um escritor que tire nada. Quero criar um desafio de leitura, e isso é uma aposta. Nós temos cada vez grupos que antes estavam excluídos da própria universidade, nós temos uma ascensão de grupos – negros, pobres –, uma questão de raça e de classe que define um novo leitor no Brasil. E eu acho que esse leitor precisa de novos livros, entende? É um pouco essa minha aposta. Você me deu a chave. Dá vontade de pular e de acompanhar a narrativa. Então pule. Mas vai esbarrar em um e outro poema ali que precisa de referências. E a coisa mais fácil do mundo hoje é buscar referências. Tem o Google. Então, o leitor que se der ao mínimo trabalho de dar um Google em duas palavras  – Príncipe Charles aos pé de Piná – escreve lá no Google, que vai ver o vídeo do príncipe Charles tentando dançar com Piná no carnaval. Não é nada obscuro. Mas eu escrevo para tentar fazer com que o leitor perceba que ler é também buscar. E buscar coisas que não estão na minha alçada decidir ou não.

– Você é um escritor que dá aula escrevendo. O seu escrever não é um escrever por escrever. Claramente existe um projeto de escrita…

Tenho dificuldade de dizer para você qual é meu projeto de escrita, mas existe com certeza uma inquietação. Uma inquietação que não é só diante do mundo, mas uma inquietação diante da linguagem com que eu vou tentar dizer a minha própria inquietação com o mundo, ou seja, não vou conseguir dizer diretamente. Não é isso. Eu não quero contar uma história, quero contar um assombro. E com que linguagem eu vou assombrar? É uma busca. Fico feliz de ouvi-la dizer que ensino escrevendo. Na verdade, estou buscando. Não sei bem se consigo ou se não consigo. E vou partir para outro. E o outro provavelmente não vai ser igual a esse. Disso eu tenho clareza. Os meus livros não são iguais.

– No prefácio de “Copacabana e outros subúrbios”, percebo uma inquietação quando você escreve que “os contos são de uma época em que minhas tecnologias maquínicas de escrita foram a caneta, o papel, a máquina de escrever e, pouco depois, os processadores de texto.” Entendo que você faz uma reflexão a respeito desse mundo da inteligência artificial. Esse mundo em que não sabemos se o autor de um determinado texto é a máquina ou o homem. Isso te inquieta também?

Me inquieta mais as pessoas que criticam. O que eu tento dizer no prefácio é que tudo que eu usei para escrever são elementos da inteligência artificial. A escrita já contém em si uma artificialização da inteligência. A inteligência humana é artificial nesse sentido. Ela é um artifício que a gente vai criar, e a minha inquietação passa por isso. Quer dizer, há uma série de recursos de escrita hoje, que estamos chamando de inteligência artificial, de ChatGPT, que me interessa. Não para mandar o ChatGPT escrever o meu livro, mas para escrever o meu livro a partir de um tipo de mentalidade que está surgindo com essas tecnologias. Quem são as pessoas que ficam diante das redes sociais? Que tipo de sociabilidade é essa? Que tipo de mentalidade é essa e que a gente está tratando como um adoecimento também? Acho que o ser humano se adapta a tudo e o que a gente está chamando de adoecimento hoje pode se transformar numa nova forma de vida. É terrível? É bom? Não quero muito discutir isso porque eu acho que é inevitável. É obra humana. O que eu acho que a gente não pode permitir, e aí acho que minha escrita tenta interferir nisso, é que as pessoas entrem de gaiato, que as pessoas embarquem nessa sem fazer uma autocrítica, sem experimentar a metalinguagem. Seja o que for, o mundo para mim sempre foi uma invenção da linguagem. Nós temos um aparelho mediador enorme. Então, acho que eu trabalho para dizer isso, trabalho para interferir nessa invenção de mundo, que é a linguagem. Não é o escritor, o romancista, o poeta, que está inventando o mundo. Os políticos estão inventando o mundo. Tudo isso que a gente chama de fake news é invenção de mundo, e as pessoas vivem nesse mundo entrando de gaiato. É isso que eu quero dizer. Sem a mínima autocrítica, sem a mínima capacidade de saber que está diante da linguagem. E aí eu acho que escrevo para isso.

– “Copacabana e outros subúrbios” revisita contos escritos há mais de 30 anos. Você se enxerga naqueles escritos?

Não me enxergo nos meus escritos do ponto de vista emocional, pessoal. Meus escritos são um trabalho de distorção, de distanciamento. Não tem confissão. E eu acho que eles sempre foram isso, foram experiências de linguagem por meio das quais tento dizer coisas. Mas é claro que vai aparecer uma coisa minha, uma pessoa que eu conheci, uma coisa que eu vivi, um sentimento que eu tenho, porque isso é o que preenche as reflexões. Eu me enxergo nos contos como um escritor, mas, como sujeito,  acho que não.

– Há contos ali escritos sob encomenda, inclusive o que você produziu para a Tribuna. Escrever sob encomenda significa que você é obrigado a escrever. Como você se sente produzindo sob encomenda? 

Adoro encomenda porque ela me mobiliza a escrever. Não sou um escritor full time. Não sou alguém que viva de escrever, embora eu não possa viver sem escrever. Eu dou aula, oriento pessoas, faço mil coisas. Então, uma encomenda, de certa forma, acende a chama do escritor. Até os livros que não foram sob encomenda, eu faço porque alguma coisa…Tem os poemas soltos, e as ideias vão se juntando… Tenho vários projetos inacabados, ou em andamento, bem mais antigos que o “Agóleo”, e aí, de repente, apareceram esse poemas, essa ideia foi ganhando uma urgência e aí vira uma encomenda para mim mesmo. Essa coisa da encomenda é um desafio. Eu gosto de atender essas encomendas.

 

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