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“Tenho que colocar minha mãe ao lado de Clarice e Machado”, afirma Vera Eunice, filha de Carolina Maria de Jesus

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Vera Eunice, filha de Carolina Maria de Jesus, prepara biografia da mãe e, em entrevista à coluna Sala de Leitura, relembra os momentos vividos na favela do Canindé, em São Paulo – Foto TV Globo
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“15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.” É assim que começa “Quarto de despejo”, livro que se tornou best-seller e no qual a mineira de Sacramento, Carolina Maria de Jesus, relata o cotidiano na favela do Canindé, em São Paulo.

Vera Eunice era bem pequenina, mas as lembranças dessa época de fome ainda estão bem guardadas em suas memórias.  Após a morte da mãe, entregaram a ela uma carta escrita por Carolina. A escritora pedia que a filha se tornasse professora. Assim ela fez. Leciona na rede pública do município e do estado de São Paulo.

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No último domingo, por cerca de uma hora, conversamos por telefone. O assunto, claro, era Carolina, e Vera Eunice permitiu-se voltar no tempo e reviver aqueles momentos ao lado da mãe e dos irmãos, João José e José Carlos, ambos já falecidos. “Lembro que minha mãe não me deixava de jeito nenhum, eu era muito grudada com ela, e ela me levava para catar papel. Lembro que eu tinha uns 4 anos e aí a gente saía, e ela sentava na calçada, e ali ela via tudo amarelo, ficava tonta de forme, porque saía sem comer. E aí ela sentia tontura e vomitava aquela bílis amarela, de estômago vazio. É de onde surge: ‘A fome é amarela’. Ela falava que eu tinha espírito de rica. Eu não queria andar descalça, queria festa de aniversário. Queria vestido cor-de-rosa, não queria morar na favela. Até hoje, quando eu ganho sapato de aniversário, de Dia das Mães, de Natal, acho que o sapato vem por causa disso aí”, contou ela, emocionada e orgulhosa por ser filha de Carolina Maria de Jesus.

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Marisa Loures – Como foi aquele momento em que o jornalista Audálio Dantas chegou e se ofereceu para publicar o livro com os escritos da sua mãe? O que sua mãe realmente esperava daquilo tudo? Vocês eram crianças. Tinham consciência do que estava acontecendo?

Vera Eunice – O maior sonho da minha mãe era sair da favela. Ela não queria os filhos dela lá. E, além disso, ela era pessoa não grata lá, porque gostava de valsa vienense, não deixava os filhos se misturarem, sempre estava escrevendo, falava muito bem, namorava muito, mas não o pessoal da favela. Os namorados da minha mãe sempre eram empresários. Na minha vida, o que eu vi foi isto. Namorou empresário, reitor de universidade, jornalista. E acho que todos eram estrangeiros. O pessoal fala que minha mãe era muito brava e enérgica, e dizem que eu tenho um pouco dela, mas ela era uma pessoa muito boa. Então, quando ela via coisas erradas na favela, não conseguia ficar calada. Por exemplo, eu lembro perfeitamente de um homem arrastando uma moça para um quarto que ficava do lado do nosso barraco. Ela foi lá, chutou a porta, até que ele soltou a moça, e aí ele foi para cima da minha mãe. Numa dessa, chegou um parque infantil na favela, e minha mãe ficou sabendo que quem estava usando o parque infantil eram os adultos. Ela vai lá e fala. Minha mãe era muito alta, era altiva, o olhar dela era penetrante. Ela chegou falando bem e o Audálio estava lá. Ele falava que descobriu minha mãe, mas não é. Minha mãe é quem descobriu o Audálio. A minha mãe já era escritora. Em 1940. Tenho um jornal aqui que me mandaram que diz assim: “Carolina poetisa negra”. E o Audálio estava começando a ser jornalista ali. Segundo os pesquisadores falaram, ele sabia que tinha uma negra na favela que escrevia. Todo mundo na favela sabia. Ele falou para minha mãe: “Posso ver seus livros?” Minha mãe deixou. Nos últimos dias de vida dele, a gente se via muito. Ele ficava num hospital diferente, que estava preparando a pessoa para a morte. Então, todo final de semana, fazia almoço com as pessoas que ele escolhia. Eu ia todos os finais de semana lá, porque ele pedia. Ele falou que, antes de morrer, iria escrever um livro chamado “Carolina”. Quando minha mãe levou o Audálio para o barraco, ela não levou para mostrar diário. Levou para mostrar romances, poemas, provérbios, peças teatrais, as quadrinhas, tudo. Minha mãe escrevia de tudo, só que ele se interessou pelo diário. O diário é até interessante mesmo, uma pessoa da favela escrevendo sobre a vida na favela. É claro que é interessante. Só que eu falei para ele. “Ali ela morreu para você.” O erro dele foi esse. Ele disse que minha mãe era muito difícil, e eu até acho que era mesmo. Minha mãe era muito intempestiva, só que a vida dela não era muito fácil. Nós fomos criados com minha mãe escrevendo, ela escreveu a vida inteira. Nasci e ela já era praticamente uma escritora. Já estava saindo nos jornais, já fazia poemas para Getúlio Vargas, já vivia dentro do Palácio do Governo. Como eu dormia com minha mãe, ela escrevia em cima de mim. Escrevia a noite inteira. E eu, quando era pequenininha, saía com ela para catar papel. Ela estava catando papel e, de repente, parava e falava: “Agora, tenho que escrever”. E ela sempre usava roupa de bolso, porque ela punha o lápis dentro do bolso. E ali, no primeiro papel que ela achava, ela escrevia. Esses papeizinhos estão na casa do Audálio.

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– Por falar nisso, alguma parte do acervo dela se perdeu?

O problema é, por exemplo, você chegava lá e falava: “Ah, que bonito, gostei desse livro seu. Posso levar para ler?” Aí ela respondia: “Pode.” Quando ela morreu, me deixou uma carta fazendo vários pedidos. E essa carta me foi entregue um dia após o enterro dela. Um dos pedidos está num papel separado. Eu imaginei que, depois de escrever a carta, ela lembrou e escreveu separado. “Vai atrás dos meus manuscritos.” Estou tentando fazer o que ela pediu. Já estou conseguindo algumas coisas de volta, mas as pessoas acham que é delas. Inclusive, muita gente quer vender o que ela deixou. Tenho uma informação de um cara que quer vender. Arrumei uma briga com ele. Uma menina me mandou um e-mail: “Você é a filha de Carolina? Esse texto aqui é a letra da sua mãe?” Ela diz que trabalha numa casa de leitura em Curitiba e que um homem foi lá e perguntou: “Você acha que isso aqui é da Carolina? Você consegue o endereço da filha dela?” Aí ela tirou foto e conseguiu me achar. Eu falei que iria buscar, e ele falou que não iria me entregar. Primeiro, eu briguei; depois, fui mais política. Eu consegui trazer dois manuscritos, mas não é o que ela me mandou por foto. Tem mais coisa lá. Estou esperando passar a pandemia para ir buscar. Ele diz que é uma herança. Ele diz que gosta muito de colecionar. Eu falei com ele que gostaria de ter tudo da minha mãe guardado e não tenho nada, porque acho que todo mundo tem que ler, o adolescente, o povo negro. Vou te falar, minha mãe sempre falava que escrevia no papel de pão e, agora, com 60 anos, é que eu fui ver. O Audálio deixou um dos livros dela no Museu Afro, foi quando eu vi que era com papel de pão. Quando abriu o Museu Afro, eles falaram que iriam colocar a biblioteca no nome da minha mãe e iriam fazer um stand para ela. O que eu tinha eu dei. Falei que o Audálio tinha coisas da minha mãe. Eles entraram, ficaram 3 horas lá dentro, mas ficaram extasiados. Dizem que o Audálio falou que eles tinham 10 minutos para pegarem as coisas e saírem. Então, pegaram o que deu. O Audálio queria tirar do Museu Afro, eu falei que iria na mídia. Agora está uma confusão, porque a família diz que é dela. O Moreira Salles (Instituto) está tentando comprar.

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Carolina Maria de Jesus e a filha Vera Eunice no ano de 1961 – Acervo/Estadão

– Eu li que você nunca leu “Quarto de despejo”. É verdade?

Eu, às vezes, até achava que não podia falar que não li “Quarto de despejo”, porque minha vida está ali. Mas eu fiz uma palestra com a filha da Ruth Guimarães, e ela falou que tenta ler as coisas da mãe, mas é complicado. Então, eu consigo ler partes. Eu queria ler o livro sequencialmente, como leio Machado de Assis. Começo a ler “Quarto de despejo”, minha mãe vem à minha cabeça, e eu não consigo continuar.

– Ela era uma mulher sem instrução e fazia tanta poesia…

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O pessoal pergunta para mim: “Quem é sua mãe?” Eu falo que também não sei, porque eu acho impressionante. O pessoal fala que eu digo “Carolina mãe” e Carolina em terceira pessoa. Primeira pessoa é aquela mulher que me criou. Terceira pessoa é a mulher de quem sou crítica também.  O pessoal pergunta: “Vera, por que você acha que ela era poetisa ali, aos 4 anos de idade?” Algumas pessoas vão para o lado do espiritismo. Eu vou para o seguinte lado. O pai dela era repentista, e o avô, segundo me falaram em Sacramento, foi o homem mais inteligente que tinha lá, o negro não lia, mas era empoderado também, igual à minha mãe. E minha mãe adorava o avô. E por que minha mãe era chamada de antipática? Eu e Conceição Evaristo fizemos as contas, e minha mãe nasceu 26 anos depois da escravidão. Então, aquela abolição “meia-boca”, a gente sabe que não teve, ficaram numa situação terrível. Tinha um branco que lia os jornais para os negros, e o avô da minha mãe ia para saber as notícias dos jornais todo dia, e minha mãe ia com ele. Então, quando ele estava falando sobre o assunto do jornal, minha mãe também estava falando. Eles a achavam antipática. Ela lia muito, gostava muito de rádio, não saía de casa sem escutar o noticiário.

– Na época, “Quarto de despejo” foi um fenômeno. Uma tiragem inicial de 10 mil exemplares foi esgotada em uma única semana. Foi traduzido para mais de 14 idiomas. Sua mãe se tornou uma celebridade, mas ainda era tratada como um ser estranho, exótico. Não aceitavam o fato de ela ser mulher e negra e estar frequentando um mundo que pertencia à elite. O que mais você acha que incomodava aquela sociedade?

Minha mãe era uma negra diferente. Tanto é que o pessoal fala: “Ah, sua mãe só se envolveu com homens brancos e estrangeiros, né?” Minha mãe falava que o negro estava engatinhando ainda no aprimoramento deles, minha mãe era uma mulher anos luz à frente. Então, além de minha mãe ser negra, mãe solteira, um filho de cada pai, namorava bastante, o livro dela vendeu demais, ultrapassou Jorge Amado. Ele não aceitou. E aí tem um jornal que fala: “Carolina, vítima ou louca?” Minha mãe foi vítima. Por quê? O Jorge Amado nos chamou para um festival do livro. Tinha muito festival do livro na Cinelândia. Ela ia muito para o Rio. Ela tinha hotel para ficar, mas Jorge Amado falou para ficarmos na casa dele. Chegamos eu e minha mãe na casa dele, era noite. Minha mãe bateu na porta, e a empregada falou: “Jorge Amado falou que aqui na casa dele você não entra. Vá procurar um lugar para você dormir. Deixe a menina, porque é perigoso sair com criança por aí. Para a menina, a gente dá um jeito.”  Lembro que minha mãe sumiu na escuridão. Entrei, passei pela sala, fui à cozinha e me puseram dentro de um sofá-cama. Antigamente, sofá-cama tinha um baú, fiquei ali dentro. De manhã, me tiraram, me deram café. A empregada falou que ele estava vindo e me colocaram debaixo da mesa. Eu vi os pés dele enquanto ele pedia o café da manhã dele, e aí minha mãe chegou e me levou. Também minha mãe foi a um festival do livro, puseram todos os livros do Jorge Amado e, para ela, só 50 exemplares. E isso eu tenho questionado até hoje, porque o livro da minha mãe é procurado. Aqui em São Paulo, por exemplo, o prefeito deu voucher para cada professor comprar livro, e as meninas falaram: “Vamos comprar o livro da sua mãe”. Mas não achamos.

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E como foi a saída de vocês da favela? Como foi essa fase de transição?

Esse é o questionamento, porque minha mãe escreveu o livro. E ela falava: “Vou colocar você no meu livro, vou colocar você no meu livro”. E punha mesmo. Ela punha a vida de todo mundo, não escondeu nada de ninguém. Logicamente, ninguém suportava minha mãe ali. Aí Audálio acha minha mãe, edita o livro e deixa a gente na favela. Foi aí que eu questionei para ele. “Por que você não tirou minha mãe da favela? Por que nós saímos de lá abaixo de pedrada e quem nos tirou foi um dos acionistas do Açúcar União?” Ele respondeu: “Ah ,porque todo mundo queria aparecer para sua mãe. Quando eu fui tirar, já tinha gente tirando.” Falei que ele tinha que ter tirado minha mãe antes de publicar o livro,  porque eles queriam matar minha mãe. No tempo em que ficamos na favela, colocaram fogo no barraco, e eu estava dentro. Ela entrou no meio do fogo para me tirar. Eu lembro perfeitamente disso, porque eu tinha um carrinho de boneca, era de vime, e eu queria o carrinho, e ele estava pegando fogo. Jogavam urinol cheio de fezes nos meus irmãos, minha mãe tinha cinco cicatrizes de canivetes. E aí ele não tira a gente da favela. Aí nos fomos morar no porão do acionista do Açúcar União. Audálio falava: “Ah, mas você fala do porão como se fosse muita coisa.” A gente não queria móveis, televisão, nada. A gente queria comida e ali tinha. A gente comia bem ali. Eu me lembro até da empregada na escada com a comida nas mãos. Meu irmão levou uma pedrada no olho, e  o supercílio caiu.

– Depois de ter alcançado essa condição de sucesso, Carolina Maria de Jesus  acabou caindo no ostracismo. Como ela passou a lidar com a fome depois de ter se livrado dela?

Quando a gente foi morar em Santana, até falei com a Conceição Evaristo, nós trouxemos muitos traços da favela. Ela falou que não, que nós não trouxemos muitos traços da favela. “Vocês saíram da favela e caíram num mundo diferente”. A gente não sabia comer, acabava de comer e metia a língua no prato. Meu irmão pegava o guaraná, punha pão dentro, fazia aquela maçaroca de pão dentro. Então, foi uma mudança muito brusca. A minha mãe ali várias vezes falava que preferia estar no Quarto de despejo, porque começou a notar os olhares, começou a perceber muita coisa. Aí nós mudamos para Palheiros. Como? Eu e meu irmão José Carlos fomos fazer um filme, e minha mãe pegou o dinheiro. Eu nunca fiquei sabendo direito, mas ela pegou o dinheiro e comprou esse sítio. Não sei se ela descobriu que pegaram muito mais e a deixaram com muito pouquinho. Bom, ela comprou o sítio e fez a casa. Um belo dia, encosta  caminhão e leva todo mundo para o sítio. Meu irmão mais velho estava com muito ciúmes da minha mãe, ele não queria minha mãe namorando, sempre foi muito introspectivo. Nós fomos morar lá, e agora que eu li “Casa de alvenaria” que eu vi que minha mãe já estava passando necessidade em Santana. Nós entramos em Parelheiros numa situação caótica para a gente. Uma coisa era você ter três filhos na favela, criança passando fome. Ali, ela trazia comida do lixo,a gente comia. Depois que a gente passou pela fase de boa vida, de Santana, a gente passava fome diferente. Minha mãe plantava feijão, mas não tinha arroz. Meu irmão adorava café e não tinha açúcar, não tinha óleo. E a gente ficava ali esperando a galinha botando ovo. Eu via que o ovo saía mole na mão da gente, porque a gente ficava esperando ela botar  para minha mãe fazer bolinho de fubá. Então, a situação ficou muito difícil. Ela ficou muito doente, achei que ela fosse morrer ali. Aí meu irmão vai, traz o Audálio. Ele compra remédio, ela toma remédio, mas não volta ao médico. Depois, foi melhorando, mas passamos muita fome. Eu ia para a escola descalça, não comia de manhã, ia esperar o lanche da escola. Chegava lá com as mãos e os pés duros. A professora colocava a gente no sol. E minha mãe já era best-seller. E ela deixou muito de escrever ali, desgostou. Minha mãe queria aprender mais. Então, escrevia tudo errado. Errado não, Como diz Lélia Gonzalez, minha mãe escrevia o pretoguês. O açúcar com dois “s”. Hierarquia com “i”. E, como ela andava com dicionário, tinha hora que  escrevia com “i”, tinha hora que escrevia com “h”. A Companhia das Letras vai publicar o livro dela, e eles me perguntaram se eu tinha algum pedido. Eu disse que queria que conservassem a grafia dela. Falaram que não dava, porque tem uma lei federal. Eu e as nove conselheiras ficamos muito chateadas. Mas eles foram atrás e conseguiram. E tem gente que diz que foi Audálio que escreveu. Ele falava que nem se fosse um mágico poderia escrever daquele jeito.

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus – Foto Reprodução

O livro “Quarto de despejo” é um best-seller, sempre está entre os mais vendidos. Carolina Maria de Jesus é estudada na academia. Neste ano, inclusive, a Universidade Federal do Rio de Janeiro concedeu o título de Doutora Honoris Causa. O que ela falaria disso tudo? Você acha que ela alcançou o lugar que merece na nossa literatura?

Ainda não alcançou, está de vento em popa. Tenho trabalhado muito isso. Quando minha mãe faleceu, na carta, ela me pede para não deixar a memória dela morrer, para eu ir atrás dos inéditos, para eu nunca vender o sítio, porque ela adorava aquele sítio, sempre quis morar no mato, pediu que no túmulo dela eu colocasse livros, que eu tomasse conta do meu irmão porque sabia que ele iria morrer. Tanto que ele morreu cinco meses depois dela. Estou tentando fazer. Quero colocar minha mãe na literatura ao lado de Clarice Lispector, porque o pessoal fala que Clarice Lispector tinha minha mãe como uma empregada, mas não era. Minha mãe era muito amiga dela. Tanto é que, quando fomos ao lançamento da Clarice Lispector, minha mãe falou:  “Olha bem para essa mulher, chama Calarice Lispector. Você vai ouvir falar muito dela.” Minha mãe fala com ela: “Você é uma grande escritora, estou até tímida perto de você.” E ela responde: “A Grande escritora aqui é você, Carolina, porque você escreve a realidade.” Então, elas tinham essa sintonia. Acho que tenho que colocar minha mãe ao lado de Clarice Lispector, Machado de Assis, Lima Barreto e Jorge Amado. Ela ainda não está, mas as coisas estão caminhando a passos largos. Por quê? Eu levei o acervo dela para Sacramento e, infelizmente, Sacramento não valorizou. Eu quero tirar o acervo dela para trazer para a Biblioteca Nacional, porque vai ficar do lado de “Quarto de despejo”, porque Audálio deixou lá. Quero que fique ao lado de “Os lusíadas”, em frente aos Jesuítas, obras raras. Só que eles não me devolvem. Mas, como a comunidade negra e o mundo inteiro estão cobrando de Sacramento, agora Sacramento está acordando. Estão tentando fazer tudo o que foi pedido com climatização, Museu da Carolina, estão se movimentando lá. Vamos ver se sai.

– Sei que você está fazendo uma biografia de Carolina. Ela sai quando?

Sabe o que acontece? O pessoal escreve a biografia da minha mãe. Olhe, a do Tom Farias, ela não é ruim não. Não vou te falar que as biografias são ruins, mas eu acho que biografia tem que ter começo, meio e fim.  O Tom Farias não foi ao túmulo. O enterro da mina mãe foi caótico, minha mãe morreu numa pobreza tão grande, e eu, infelizmente, não tive dinheiro para fazer o enterro dela, comprei o caixão mais barato que tinha, não tive dinheiro para comprar flores. Minha mãe ficou a noite toda sendo velada sem flores. E, quando o padre veio, rezou, ele pediu para cada um pegar uma flor no jardim. O pessoal está lá ainda. Ele poderia ter ido conversar com o pessoal. Acho que uma biografia tem que ter isso. Um biógrafo falou que minha mãe queimava a mão da gente quando estava nervosa. Olhe, minha mãe era brava, porque tinha que ser mesmo. Estou lendo “Casa de alvenaria”, e ela não sabia se escrevia, se dava autógrafo, se atendia aquele monte de gente pedindo as cosias para ela, se viajava, se olhava os três filhos. E aí ela chegava e pegava todo mundo. Aí, eles colocam que minha mãe queimava a mão. Isso não. Ela batia, era brava, mas não queimava a mão da gente. Não agredia a esse ponto. “Ah, sua minha mãe foi casada”. Como ela foi casada? Ela nunca casou e deixou claro isso. “Ah,sua mãe bebia”. Como ela bebia? Como é que o cara põe que ela bebia? Ela não bebia. Aí eu vou a essas palestras e acabo discutindo com o biógrafo. Ele disse que quem falou isso para ele foi a mulher que fez o parto dela. “Ah, ela tem cem anos.Você  vai questionar o que ela falou?” Vou porque minha mãe está morta, não está aqui para falar. “Você está vendo queimadura nas minhas mãos?” Então, por isso eu resolvi que eu tenho que escrever. Vou esperar sair “Quarto de alvenaria” e lanço depois. Está bem encaminhado.

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