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Aline Bei: ‘Minhas personagens ainda não estão letradas no feminismo’

aline bei

(Foto: Isadora Arruda)

Aline Bei Foto de Isadora Arruda
Aline Bei estreia na narrativa em terceira pessoa em “Uma delicada coleção de ausências”, onde acompanha quatro mulheres — neta, mãe, avó e bisavó — que, entre suas individualidades, compartilham traumas e mágoas que atravessam gerações – Foto: Isadora Arruda
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Em “O peso do pássaro morto”, Aline Bei dá voz a uma mulher que sofreu inúmeras perdas ao longo da vida. Com Lucas, seu filho, ela nunca conseguiu se conectar de verdade, e os dois são sentenciados a conviverem com o peso um do outro. Ela é quem conduz a história, contada em primeira pessoa. Durante a travessia da escrita, contudo, a autora sentiu que os outros personagens também queriam falar. Especialmente, Lucas. “E eu?”. Eles pediam que Aline se desdobrasse sobre seu ponto de vista, e essa indagação apontou um caminho para “Pequena coreografia do adeus.” Agora, quem assume as rédeas da narrativa é Júlia, uma filha de pais separados que vive sufocada em um universo familiar de brigas e falta de afeto.

“É uma pena que a maioria das nossas avós vão embora antes de virarmos pessoas que sabem aproveitar uma conversa”, lastimou a protagonista do segundo romance. O lamento inquietou Aline, que enxergou nessa fresta uma das portas de entrada para o terceiro livro. “Uma delicada coleção de ausências” (Companhia das Letras, 288 páginas) nasce, explorando temas já presentes nas obras anteriores, como maternidade e infância, mas com uma mudança na perspectiva narrativa. Pela primeira vez, surge uma voz em terceira pessoa na literatura de Aline.

O novo romance nos apresenta quatro mulheres. Laura vive com a avó Margarida, que sustenta a casa lendo mãos numa feira. As duas compartilham uma relação profunda até a chegada de Filipa, bisavó de Laura e mãe de Margarida. A chegada dessa senhora muda completamente a rotina familiar. Enquanto Margarida se volta aos cuidados da mãe, Laura sente a ausência do afeto que recebia. “Ainda que sejam quatro mulheres diferentes, há uma possibilidade de leitura de que são todas a mesma mulher, em fases diferentes da vida”, diz a escritora, neste retorno à coluna Sala de Leitura, em uma conversa telefônica realizada na última terça-feira.

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Qual a história que está por trás de “Uma delicada coleção de ausências”? O que conduziu Aline por uma nova forma de narrar? O que ela aprendeu com suas personagens femininas? Como construir mulheres que não são letradas no feminismo, pois estão exaustas demais pelo cotidiano, mas que o vivem na carne? “Minhas personagens não são feministas. Por enquanto, não aconteceu. Acho que a mais próxima disso seria a Júlia Terra, que é uma menina, que é uma escritora, que lê muito. Ela, com certeza, em algum momento, vai chegar a Bell Hooks, vai chegar a Audre Lorde, ela vai encontrar Heloísa Teixeira.”

Marisa Loures – Qual é a história que está por trás de “Uma delicada coleção de ausências?

Aline Bei – Olha, eu só posso falar da história do processo, porque, se eu disser a história que está no fundo do livro, posso correr o risco, e já corro esse risco, de estragar a experiência da leitora ou do leitor, que vai construir a sua própria interpretação, o seu fundo. Então, prefiro falar do processo, que também é um modo de contar o outro lado dessa história. Foi um livro que surgiu para mim em fases diferentes, ele foi chegando para mim por poros diferentes. A primeira entrada nele foi quando eu ainda estava escrevendo “Pequena coreografia do adeus”. Eu olho para os três trabalhos como uma trilogia involuntária, e eles existem mais fortes em relação um ao outro. Eles podem ser lidos separados, não tem uma obrigatoriedade, nem uma linearidade entre eles, mas eles ficam mais fortes quando são vistos um em relação ao outro. Eu estava escrevendo a “Pequena Coreografia”, e tem um momento que a Júlia, minha protagonista da “Pequena”, faz uma reflexão sobre a avó dela, que ela conheceu muito pouco, porque essa avó tinha uma dificuldade de relação com a própria mãe, e ela tem algumas ilusões, algumas expectativas em relação a essa avó. Ela imagina essa avó mais do que a tem, como uma experiência. E ela diz ali, em algum momento, que é uma pena que a maioria das nossas avós vão embora antes de virarmos pessoas que sabem aproveitar uma conversa. E, quando ela tem esse pensamento, para mim, um portal se abriu, e eu fiquei com isso em mim, sentindo que o meu próximo livro estava ali, estava nessa fresta. E de fato não era uma pista falsa. Quando comecei a escrever a “Delicada”, essa história da avó e da neta se abriu como uma revelação, e com bastante fôlego, para que eu continuasse nesse tema por quatro anos, investigando essa história a fundo. Um outro modo de entrar nessa história, para mim, foi numa viagem que eu fiz em 2019 para Buenos Aires. Quando eu vi uma mulher numa praça, ela era uma quiromante, ela estava numa mesa, coberta por uma toalha de flores, e eu acho que o nome da Margarida veio inconscientemente dessa toalha. E era uma mesa que tinha um cunho intimista, que parecia deslocada num lugar público, e ela estava de costas, um pouco encurvada, que é um corpo que caminha pelo livro. O corpo das mulheres mais velhas desse livro vai se curvando lentamente para a terra. E eu acho que esse corpo também foi algo que eu absorvi dessa minha visão. Eu não me aproximei da mulher, não vi o rosto dela, tirei uma foto, porque eu fiquei muito intrigada com isso, e levei para casa, e isso ficou em mim. Como eu juntei a avó na figura da quiromante, foi numa pós-graduação, a minha terceira porta de entrada nessa história, que foi uma pós que comecei em 2021, na Puc-Rio, sobre escritas performáticas. Foi um pouco depois de ter publicado a “Pequena.” Essa pós me ajudou muito a pensar a estrutura desse livro, e, numa oficina de escrita dessa pós, conduzida pela Adriana Maciel, que é uma escritora, cantora, editora maravilhosa, ela pediu para a gente escrever um texto que se passasse num presente contínuo. E eu nunca tinha escrito no presente, estava escrevendo sempre no passado, que é um tempo mais possível de contar as histórias, me parece mais alargado. E o presente, de repente, me revelou essa mulher, a Margarida, a avó, com a neta, em relação com a neta, mas também em relação com essa mãe, a bisavó, a Filipa, que surgiu nesse exercício, e essa ausência, que é a Glória. Então essas quatro mulheres se apresentaram para mim a partir desse exercício, nesse tempo presente, que é um tempo opaco, onde a gente ainda não tem essa questão da elaboração de algo, a gente vive algo, e há uma névoa, que inclusive está nomeada no livro, porque só se sabe de fato o que acontece depois, depois que a gente vive, aí a gente começa a elaborar. E a Adriana, nossa professora, pediu também que a gente trouxesse uma foto para coexistir com esse texto, uma foto que não fosse ilustrativa, um pouco para trabalhar essa questão estética de diversos gêneros na folha, né? A fotografia, as artes plásticas. Eu puxei essa foto que tirei lá de Buenos Aires, e aí foi que a quiromancia se encaixou na Margarida como um ofício que foi me revelando, ao final das contas, no livro todo. Então foi por esses três pontos que essa história surgiu.

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– Além do presente contínuo, um tempo verbal que não aparecia nos seus trabalhos anteriores, há também outras mudanças importantes no novo livro. Nos dois primeiros, a sua escrita se aproxima do que alguns chamam de prosa poética, apesar de eu saber que você prefere dizer “escrita performática”, em razão da sua ligação com o teatro. Agora, porém, você se aproxima mais da prosa tradicional. Também há uma mudança na perspectiva narrativa: surge, pela primeira vez, uma voz em terceira pessoa. Gostaria que você falasse sobre o que te conduziu por essas novas forma de narrar.

Legal. Na verdade, esse desejo de escrever numa terceira pessoa já existia em mim desde o “Pássaro”. Eu percebi, conforme eu ia escrevendo “Delicada”, que é o meu primeiro livro com mais fôlego. Antes, eu escrevia coisas mais curtas. Eu percebi que me inquietava o fato de ter um ponto de vista único. Apesar de que, cada vez que a gente escolhe uma pessoa para narrar, é uma limitação que a gente vai ter que lidar na folha. Mesmo que a gente também crie contrastes, enfim, faça existirem várias narrações dentro de um livro, o que também é possível, tudo é possível de ser construído, mas não é possível para todo mundo o tempo todo, né? Acho que gente precisa escutar o momento técnico que a gente está para conseguir construir, dentro do que a gente tem, o melhor texto possível. Então, mesmo inquieta em relação à primeira pessoa, gostando da intimidade que a voz tem com a leitora e leitor — no caso do “Pássaro”, sendo uma mulher que perde tanto ao longo da vida, ela se apropriar da própria história e narrá-la era um ato também que me interessava muito, achei um ato político importante nesse livro —, então, tentei essa primeira pessoa, mas isso não impediu que os personagens me olhassem durante a travessia da escrita, me perguntando “E eu?”. Em especial o Lucas, que é o filho dessa protagonista sem nome e que não se sente amado pela mãe. Ele ficava me olhando o livro inteiro, querendo que eu realmente me desdobrasse no ponto de vista dele. Então, eu transformei essa inquietação no meu segundo livro, que é o “Pequena Coreografia de Adeus”, em que a Júlia é uma filha. De fato, é o ponto de vista da filha em relação à mãe. Aí um ponto de vista que não tem tanta proximidade com a mãe do “Pássaro”, mas, por outro lado, também seria possível que as duas, em alguma atmosfera, tivessem coisas em comum, por serem mulheres de uma mesma geração. E aí eu fiquei muito intrigada com a Vera, que é uma grande personagem, a mãe da Júlia. Mas, de novo, um livro em primeira pessoa, com uma protagonista que é uma artista, que tinha uma dicção muito clara para mim, e eu naveguei por esse livro. E aí, quando comecei a escrever “Delicada”, me senti subitamente pronta, e a palavra “subitamente” não me parece a ideal, porque eu já estava desejando isso e trabalhando para que isso acontecesse, mas também o tempo de criação é tão complexo que, às vezes, parece que é de repente, num rompante. Mas eu me senti pronta para escrever com mais vozes, equilibrar mais vozes. E eu achei que essa história, tendo quatro protagonistas, uma delas sendo uma ausência, era fundamental que a história fosse contada em terceira pessoa, para que ela crescesse nesses pontos de vista. E aí eu comecei a lidar com isso e aprendi muito escrevendo dessa forma. Com relação a essa questão da prosa, eu não penso muito em gêneros clássicos. Prosa, poesia, prosa poética. De fato, me interesso muito pela palavra “performance”, “performático.”  Eu me interesso muito pelo teatro como entidade, como origem do meu trabalho, e nesse livro, eu senti que a minha fala dele crescia de dentro para fora. E os meus parágrafos começaram a se apresentar, ainda que arenosos, em alguns momentos, eles se dissolvem na folha e propõem uma espécie de ampulheta que vai descendo e ralentando, mas, ainda assim, são parágrafos mais estruturados. E eu fui respeitando esse ritmo, essa pontuação, esse crescimento de dentro para fora, e fui percebendo que essa história precisava ser contada dessa forma, para que ela existisse em uma potência mais pontiaguda, mais luminosa. E aí o cinema vem muito ao meu socorro. Eu adoro outras artes. Sou uma pesquisadora, uma curiosa e me alimento muito das outras artes para criar a minha, e o cinema é uma arte que ensina onde colocar a câmera. Ainda que a gente pense que a literatura não tem uma câmera, tem algo simbólico nesse olhar do narrador que pode ser realmente uma metáfora dessa câmera cinematográfica. Então, eu me alimentei de alguns cinemas importantes, autorais, e eles me deram essa narradora, esse tom, que é um tom observador, mas que se mistura, em alguns momentos, com as personagens, criando fluxos de consciência e sendo, inclusive, a narração interrompida pelo temperamento da personagem, por um pensamento dela. E tudo isso foi muito interessante de construir, e foi algo novo para o meu trabalho, para o meu ateliê, porque a primeira pessoa nunca tinha me proporcionado esse caleidoscópio de pontos de vista.

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E você enxerga essa “trilogia involuntária” como encerrada? Ou há ainda silêncios que pedem voz?

Acho que eu encerrei uma fase, um período de criação. Com esse livro, estou há quase dez anos como autora publicada, e eu acho que é um tempo bem simbólico dessas primeiras obsessões que surgiram, que se desdobraram ciclicamente nesse meu processo. Eu quis nomear isso até para mim mesma, para eu continuar caminhando em direção a uma outra coisa que agora parece se impor a mim. E eu digo que é uma “trilogia involuntária” porque tem alguma coisa que é do texto, e o texto, ele mesmo, me indica os caminhos para seguir. É uma espécie de pressentimento que eu tenho, que vou indo em direção a isso, até que isso se revele. Então, eu percebi que esses livros eram feitos de uma mesma matéria não escrevendo o “Pássaro”, nem mesmo escrevendo a “Pequena”, mas realmente no processo da “Delicada.” Já, quando a porta começou a se fechar às minhas costas, percebi que eu já não estava mais onde eu sempre estive, mas que eu me movimentei em direção a uma outra coisa. A “Delicada” faz fronteira com uma nova lógica em que agora eu adentro como artista para o meu próximo livro. Então, os meus livros, eu tenho essa impressão de que eles serão sempre correlacionados. Eles sempre vão ganhar muito se a leitora, o leitor, e a crítica olharem de cima e não só de dentro, porque há muito entre eles, há muito no que eles não dizem também. E o modo como eu vou avançando é quase como se eu estivesse escrevendo um livro único que vai sendo montado ao longo do tempo, como capítulos, como atos, como gestos não isolados no tempo e espaço, mas em relação a tudo que eu já venho dizendo e já disse e continuarei a dizer com uma outra ênfase ou de outro ângulo. Então, é assim que eu sinto o meu projeto literário, muito aberta mesmo ao movimento sempre, mas também atenta a essas obsessões, a esses ciclos.

Aline, o que dessa avó e dessa bisavó que você cria no livro faz você entender sobre o tempo, o envelhecimento e o que nós deixamos como herança afetiva?

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Na verdade, já venho trabalhando o envelhecimento, especialmente o feminino, desde o primeiro livro. A protagonista do “Pássaro”, que é uma anônima, é uma mulher que vai saltando pelo tempo. A gente tem lacunas, muitas lacunas na vida dela, mas a gente tem algumas presenças nessa vida. E ela é uma mulher que envelhece rápido, rápido demais, porque, enfim, com tudo que acontece com ela, o corpo dela vai ressecando. E ela termina ali aos 52 como se tivesse 102 anos, porque o modo como cada um habita a sua idade é muito particular e não é linear. A gente sabe, claro, que tem um corpo biológico com o seu tempo, um espaço reconhecido cientificamente, mas aqui estou numa licença poética, mesmo falando da experiência corporal. E, às vezes, a gente pode se sentir mais jovem aos 40 e poucos anos do que a gente se sentia quando tinha 18. Isso é uma experiência muito possível na nossa subjetividade. Então, a minha personagem do “Pássaro” envelheceu muito rápido mesmo, e eu trabalhei esse corpo ressecado, esse corpo enterrado em si mesmo. No caso da Júlia, ela era uma personagem que exalava a juventude por fora, mas ela, por dentro também, por conta das vivências em relação ao pai e à mãe, ela se sentia sempre uma adulta, né? Ela foi privada da própria infância. Então, para alguém que não viveu plenamente uma época da vida, acho que isso fica cobrando a sua conta pelo resto do tempo que a gente vai estar aqui. E a infância da Júlia, por não ter começado, ela nunca termina. Então, a Júlia fica numa ambivalência de idades. Às vezes, se sentindo muito velha, sendo jovem. E, às vezes, se sentindo muito menina, sendo uma adulta. Então, tem esse descompasso por conta do trauma. E, nessa história, a gente tem vários corpos, né? De certa forma, não estagnados numa idade, porque a gente vai se locomovendo pelo tempo a cada segundo, mas a gente tem um tempo mais curto. Nos meus outros livros, tinha um salto de anos. Nesse, a gente tem meses, né? A gente pode olhar até como semana. Tem o círculo, que é esse prólogo, mas depois, no tempo do livro, nesses três atos, não é um tempo que passa muito longamente. São alguns dias observando essas mulheres, né? Então, é muito mais o modo como esses corpos se relacionam com o espaço, com seus desejos, com as suas ausências e com eles mesmos. E como isso vai gerar uma espécie de emoção singular no livro. Foi exatamente assim que eu pensei. Eu não pensei necessariamente em criar uma avó. Mas essa avó, ela está sempre em relação consigo mesma e com os outros. E temos também essa figura da bisavó, que é a mãe da Margarida, que é uma figura ancestral, uma grande matriarca, que aparece a partir da metade do livro. E muda tudo quando ela aparece, né? Porque ela, na verdade, é todas elas. Tem isso ainda nesse livro. Ainda que sejam quatro mulheres diferentes, há uma possibilidade de leitura de que são todas a mesma mulher, em fases diferentes da vida. Como se fosse um diamante que a gente gira e consegue ver por outros pontos, porque, apesar de diferenças entre elas, a gente consegue ver muitos pontos em comum e muitos ímpetos em comum. Inclusive a fuga, esse desejo de fuga, estabelecido em cada corpo de uma determinada maneira. Então, foi dessa forma que eu trabalhei esse imaginário da mulher mais velha.

LEIA MAIS entrevista com Aline Bei aqui: “fui levada para a escrita quando percebi que pessoas vivas escreviam. e tinham sonhos”

E cada uma dessas mulheres te ensinou muita coisa…

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Com certeza. Elas me ensinaram tanto. Eu queria muito poder levar tudo o que aprendi com esse livro para o próximo, mas eu recorro aqui a uma frase da Virginia Woolf, num ensaio que ela escreveu sobre ficção, em que ela diz que a arte é uma ponte muito estreita, e a gente não consegue levar todas as ferramentas nessa ponte. A gente precisa escolher algumas, porque, se a gente levar tudo, a gente tem o perigo de derrubá-la no rio, ou pior ainda, se afogar com o peso de tudo que a gente está levando. Então, algumas coisas precisam ficar para trás, mas eu senti que foi uma jornada de amadurecimento bonita, a escrita desse livro. Eu aprendi muito.

– Em outra entrevista, você me disse que suas personagens não têm absolutamente nada de você, mas, ao mesmo tempo, têm completamente tudo. Diz que sua escrita é “descolada da própria biografia”, mas atravessada por emoções que você viveu. Que tipo de fidelidade é esta, que não se prende ao fato vivido, mas à emoção sentida?

Isso é, na verdade, uma convocação do personagem em relação a mim. O personagem se apresenta para mim como uma determinada entidade. Como eu te contei, essas quatro mulheres se apresentaram nesse exercício de escrita. De repente, eu preciso correr atrás de um repertório para dar conta de mobilizar em mim o que elas são, porque a gente vai se misturar, mas não ao ponto de nos tornarmos a mesma. Sempre com um distanciamento. Elas vão me atravessar. Elas vão me levar junto, e eu vou ficar com alguma coisa disso também. Então, às vezes, o que acontece é que, quando me aproximo da personagem, preciso encontrar, como procedimento de criação para essa personagem na folha, algo que nos une. Algo que me faça entender a subjetividade dela, o acontecimento primordial dela, de dentro e não de fora. Porque não é só ouvir: “Ah, aconteceu isso com a Margarida.” Está bom, mas como é que eu entendo isso de dentro? Então, eu vou precisar encontrar em mim uma vértebra, uma memória, um sonho, uma pele, que seja, que eu possa dilatar ou diminuir e, dessa forma, encontrar ressonância com quem a Margarida é. Entende? Faço esse movimento com todos os meus personagens. E é por isso que não tem nada a ver com a minha biografia, mas com as emoções que eu carrego, com as minhas experiências, as cores, as luzes. Tudo que eu acumulei como pessoa no mundo, pelas leituras e vivências, vai ser um repertório que eu vou convocar para poder construir essas personagens, na folha, com humanidade. Então, estou no jogo o tempo todo, não estou a salvo.

Você diz que suas personagens não são letradas no feminismo, pois estão exaustas demais pelo cotidiano. Como foi construir essas mulheres que vivem o feminismo na carne, na repetição do cuidado e na herança de silêncios, mas sem nomear isso?

É muito inquietante, porque, de fato, hoje, a gente vive um momento, pela internet, redes sociais, o reconhecimento se desloca mais, ele é mais horizontal, mas nem sempre foi assim. E eu acho que as pessoas, às vezes, que mais precisam, de fato, do feminismo, são as que menos, talvez, tenham acesso a ele. E as minhas personagens estão num outro tempo e espaço, que não é exatamente esse tempo nosso, de agora, esse presente. Sempre as imagino numa espécie de anos 90, ali, anos 80, 90, mas, ainda assim, não é um ano histórico, é um ano lúdico, amarrado bastante ao meu imaginário teatral. É até difícil explicar esse tempo. Mas essas mulheres estão muito mais no exercício simbólico do feminismo do que enraizadas em questões do nosso presente. Não por conta disso elas não possam iluminar justamente a nossa vida hoje. Talvez, justamente por essa distância, é que elas consigam iluminar assuntos que são tão caros a nós como sociedade. Mas não é por aí que eu adentro a minha escrita, sabe? É a partir do simbólico, do metafórico, do detalhe, da obsessão. E eu também tenho revelações a respeito desses meus assuntos depois que o livro termina. Aí eu percebo o quanto é político, o quanto a gente pode mergulhar nesse livro e discutir coisas, trazer pautas importantes, gerar debates, e tudo isso é maravilhoso que aconteça. Mas, realmente, não é por esse poro que eu entro. Depois eu dou nome. Bom, minhas personagens não são feministas. Elas ainda não estão letradas no feminismo. Por enquanto, não aconteceu. Acho que a mais próxima disso seria a Júlia Terra, que é uma menina, que é uma escritora, que lê muito. Ela, com certeza, em algum momento, vai chegar a Bell Hooks, vai chegar a Audre Lorde, ela vai encontrar Heloísa Teixeira. E aí ela vai se letrar. Mas ela está com os livros, ela está interessada nos livros. As minhas outras personagens não. Ainda não. Então, enfim, é uma outra existência.

– É curioso como você imagina uma continuação para a história da personagem. Ela vai chegar a Bell Hooks…

Ela segue em movimento. O livro acabou, mas a personagem continua. É assim mesmo.

Capa de “Uma delicada coleção de ausências” – Foto: divulgação

– E, em tempos de velocidade, sua escrita parece nadar contra a corrente, convida à pausa, à escuta, à respiração entre frases. Como cuidar do tempo da escrita num mundo que exige pressa?

Acho que a arte, no geral, sempre está à margem do que se espera do tempo. Tem um paradoxo aí, né? A arte é filha do tempo, ela ilumina, justamente, para nós, o nosso tempo, de maneira absolutamente complexa, sofisticada, mas, se ela não estiver à margem dessa negociação que se faz com o tempo dentro da nossa sociedade, não se cria, porque o tempo da criação, o tempo da leitura, que também é um tempo criativo, é um tempo outro mesmo. É um contratempo. É um espaço que se cria. É uma heterotopia, como diz Foucault. É um espaço que se cria num espaço cotidiano que abre frestas, possibilidades onde o tempo não corre colado num relógio, ou no tempo do acontecimento, ou no tempo da expectativa de render. Não. É uma outra coisa. Pode ser que a gente leia um livro inteiro e pareça que passou um mês, mas, na verdade, apenas duas horas se passaram. A gente pode ter essa impressão subjetiva do tempo, né? Como acontece também nas grandes experiências de corpo que a gente passa. Escrever, ler, fazer arte é o tempo da infância, que é aquele lugar onde não há relógio domando a nossa relação com o espaço, com o corpo e com os outros. Então, toda arte, eu acho que ela acaba convocando a gente para esse outro tempo. E é por isso que ela é tão prazerosa para quem se entrega e consegue inserir essa dinâmica na sua rotina, porque ela realmente nos faz respirar de outro modo. E, quando a gente volta, a gente volta com ferramentas para questionar coisas que a gente naturalizava, que estavam cristalizadas, que às vezes nos faziam mal. A arte acorda completamente poros do corpo que estavam, às vezes, ali, adormecidos, atrofiadas. Então, eu acho que quem entra, quem se entrega a isso, não consegue depois abrir mão desse tipo de prazer, desse gozo que também tem a sua melancolia, a sua dificuldade. Mas há um prazer imenso em ler, escrever, fazer uma arte, estar num outro tempo dentro do tempo.

Percebo que sua relação com os leitores é muito intensa. Há uma legião que se reconhece em suas frases e guarda trechos como quem guarda um bilhete querido. De que maneira você lida com esse retorno tão íntimo? Isso interfere, de alguma forma, no seu processo criativo?

É uma pergunta bem complexa, porque acho que, por um lado, não altera, no sentido de que eu tenho que preservar, com muita paixão e muita seriedade, o meu tempo de escrita e o meu compromisso com o material, com o livro que eu estou escrevendo. E eu só posso ser fiel a ele, a esse material, a essa escuta. Então, na verdade, quando estou escrevendo, não penso exatamente em leitor, em leitora. Penso só em levantar aquele artifício que me parece mais real do que coisas que estão na vida e que a gente pode chamar de real. É só isso que eu faço durante o processo. Depois, quando você lança um livro, é realmente uma outra fase, tão diversa, tão diferente, mas que não me assusta, porque eu, por ter sido atriz, caminho por essas nuances do processo com muita tranquilidade e com muita curiosidade também. E, quando há esse momento de troca com as leitoras, em que a gente conversa sobre o livro, debate numa entrevista como esta, num grupo de leitura, numa mesa literária, enfim, pelos corredores dos eventos, tudo isso me dá muito prazer. Mas é uma outra Aline, quase, que está lá. Mas também não é impossível que essa Aline que ouviu, que se misturou com tantas falas, com tantas verdades, com tantas subjetividades, também não transforme a Aline do processo, né? Porque, no fim, é a mesma também. O que eu acho que o artista não pode fazer é se render a uma espécie de gosto do outro, um desejo do outro. É muito importante que a gente sustente o que o texto é por ele mesmo. E, se isso depois trouxer bons frutos, se os leitores vão gostar, não vão gostar, ótimo. Mas não é isso que interessa, é muito mais esse ser fiel ao processo, ao livro. Então, tento trabalhar nessa harmonia.

 

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