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As histórias da filha de Dona Canô

Mabel Velloso 4
Mabel Velloso
 Irmã de Caetano e de Bethânia, Mabel Velloso se descobriu escritora ao perceber que as histórias só falavam de crianças brancas com cabelos lisos – Foto Mila Cordeiro/Ag. A TARDE
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Mabel Velloso é filha de dona Canô e de seu Zeca. É irmã mais velha de Caetano e de Bethânia. Sua casa, sem dúvida, sempre respirou cultura. “Meu pai nos ninava dizendo poemas. Minha mãe cantando canções antigas. Dormíamos ouvindo coisas bonitas. A poesia encontrava espaço e nos embalava”, conta ela, uma sábia senhora de cabelos grisalhos e 88 anos muito bem vividos. Formada professora, é na sala de aula, em contato diário com os alunos, que ela começou, também, a escrever. Mesmo sem ter planejado, tornou-se escritora e já são mais de 30 livros publicados, entre eles, os infantis recentemente reeditados pela editora Pingo de Ouro: “O trenzinho azul”, “Medo do escuro” e “Cavalinho de pau”.

Já ouvi dizer que ela tem uma memória muito privilegiada e que, por isso, recorda-se de fatos já há muitos vividos. Então, quais seriam as histórias escondidas por trás dessas três obras que foram relançadas para alegria dos bem pequeninos? “Não sei. Como misturei as histórias! Quando viajávamos, meu pai chamava nossa atenção para um varal, para um rio que corria manso, para uma canoa balançando… Quando passei a escrever, peguei um trem, andei nas noites escuras, e corri num cavalo feito de um cabo de vassoura. A imaginação não tem freio! Sai correndo. Nem sempre tem o fim que pensamos no começo. Recorremos ao sonho. Ele cabe em qualquer lugar”, confidencia a também contadora de histórias e cordelista.

Sabe aquela simplicidade que tem gosto de infância longe dos aparelhos eletrônicos? Cada um desses três livros remete-nos a ela. “O trenzinho azul” traz um trenzinho que sai em viagem para o mar. Ele está muito feliz e, inicialmente, ninguém parece ter reparado que ele se aprontou todo para essa grande aventura. Já “Medo de escuro” apresenta um garotinho muito alegre durante o dia, mas que tem pavor da noite. A criança que se aventurar por suas páginas vai descobrir que a escuridão não é tão assustadora quanto parece.  Agora, “Cavalinho de pau” reúne sonho, imaginação e poesia ao trazer a história de um menininho que ganha o cavalinho de pau, porém, em determinado momento, ele chega a duvidar se aquele presente é mesmo de brinquedo. Será que o cavalo é de verdade? Só mesmo lendo o livro para descobrir.

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Marisa Loures – Em uma de suas entrevistas, disse que nunca pensou em fazer da literatura sua profissão e já são mais de 30 livros. Como isso aconteceu?

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Mabel Velloso – Sempre ouvi histórias e descobri que contar e cantar são o melhor caminho para ensinar. Levei cada aluno a ouvir e a cantar, e o resultado foi além do esperado. Todo aluno aprendeu e gravou tudo que contei ou cantei. Pensei que estava no caminho certo. Resolvi começar a escrever histórias porque, nos livros que tínhamos, as histórias falavam de crianças brancas, de cabelos lisos. Meus alunos eram pretos e de cabelo crespo. Uma menina uma vez me disse que não gostava de história porque nenhuma história contava a vida dela. Tornar-me escritora foi um bom acaso.

– Quando leio seus três livros que estão sendo reeditados pela Pingo de Ouro — “O trenzinho azul”, “Medo do escuro” e “Cavalinho de pau”— vem à minha mente uma infância de simplicidade, longe de todas as tecnologias oferecidas, hoje, às crianças. Diferentemente do que muitos pensam, um bom livro, uma boa história, ainda é o que encanta a garotada?

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Minha infância foi com muita criatividade. Brincávamos com botões, frascos de perfume vazios, caixas de charuto, caixas de sabonete. Tudo era transformado e virava gente, bicho, alma. A imaginação corria solta! Nossas viagens eram para Salvador, de trem ou de navio. Tudo que vivi quando menina volta de forma leve e bonita à minha imaginação e escrevo para as crianças que me cercam. Todas esperam o final da história com muito interesse. A aparelhagem eletrônica não fez caminho nas histórias que criei. Penso que estou com atraso, mas, numa contação de história, quando sinto o interesse das crianças, vejo que escolhi o melhor caminho.

– Aí leio uma entrevista em que a senhora diz que, entre seus projetos, está continuar indo às escolas contar histórias para as crianças que gostam de ouvi-la. Que encantamento é esse que reside no ato da contação de histórias e que é capaz de seduzir a meninada?

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Por conta da pandemia, deixei de ir às escolas. Sinto falta do olhar das crianças. Em cada uma, um olhar com interrogações: Por que lá em casa ninguém canta nem conta? Por que ninguém segura minha mão quando tenho medo? Por que meu pai não veio dormir? Por que Deus me deu uma mãe bonita? Perguntas que me faziam antes da pandemia. Muitas ficaram sem resposta. Por que uma criança teria pedido uma mãe feia? E ela explica: mãe bonita sai… Vai passear! O desejo da companhia, da mão segura, do aconchego.

– Sou mãe de uma menina de 10 anos que acaba de começar o 6º ano e também sou professora como a senhora. Dou aula de Língua Portuguesa e de redação para alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. E não me canso de falar que me incomoda saber que, até o Fundamental I, as crianças parecem amar os livros. Depois, a impressão que tenho é a de que eles se tornam seus inimigos. Onde nós, professores e pais, teríamos deixado escapar esse amor?

O amor pelos livros não morre. Quem na infância conheceu o amor pelo livro, quem brincou com o livro, quem fez dele um brinquedo, não o esquece e nunca vai pensar que é um inimigo. O amor é crescente. O amor é o companheiro que cresce junto, se desenvolve, transforma. Morrer não morre. Em cada sala de aula, todo professor deve ter um lugar especial para guardar os livros. Lugar de destaque, especial, valorizado. O livro é um bem e deve ser tratado sempre como o melhor amigo.

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– Sei que a senhora continua produzindo ativamente. Poderia, por favor, contar o que tem feito?

A minha vida segue. Completei 88 anos. Se encontro crianças, quero conversar com elas. Tem sempre assuntos interessantes. Tenho um neto, que hoje já é pai e me disse: “Livro é um brinquedo calado!”

 

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