Para ouvir o silêncio

Por Nara Vidal

Esta semana foi marcada por um crime bárbaro ocorrido nos Estados Unidos. Um homem é rendido por um policial e este o sufoca até a morte. A cena aterrorizante foi registrada em um vídeo. O homem morto é negro. O criminoso é um policial branco. O ato gerou revolta e protestos mundiais. As pessoas quiseram expressar que aquele ato é racismo e é inaceitável.

No Brasil, pessoas negras também são mortas a todo momento. Mata-se pessoas negras há séculos. São apagadas e insultadas quando, por exemplo, um de nós, do alto do privilégio de nunca ter sentido na pele o preconceito racial, recusa a validade das cotas universitárias para negros.

Mês passado, uma criança foi baleada por policiais no Rio. Quantas vezes ouvimos essa frase? Por favor, não se acostume com ela. A criança baleada era negra. Não se acostume com essa frase

Um dos ecos que guardei desse crime foi a frase do pai de João Pedro Matos, a criança morta: “A polícia matou uma família completa.” Ao tirar a vida de um jovem, uma família completa se despedaça. A mesa terá sempre um lugar ausente na hora do jantar. Qual seria, então, a razão para tão pouco barulho e protesto quando morreu João Pedro? Talvez porque o Brasil seja um país racista na sua essência e na construção da sua própria sociedade. Junte a isso a ignorância dos que negam racismo estrutural ou a arrogância dos que sugerem ser vítimas de racismo reverso. Arrogância e ignorância são melhores amigas e de mãos dadas expõem a incapacidade de escuta dos seus adeptos. O racista não ouve. O racista fala alto das suas certezas, tem medo da mobilidade social, tem medo de um mundo mais justo. O racista é um mau-caráter.

Mas o racismo, essa doença crônica que carregamos historicamente, já não tem lugar no mundo e tornou-se ridículo. Se cada um de nós entender que o racismo não é um problema exclusivamente dos negros, mas uma questão social ampla e completamente abrangente, vamos ter dado início ao processo de reduzir um mal enorme. Afinal, racismo é mais do que um equívoco e uma vergonha, é um conceito inaceitável e injustificável, além de abominável e criminoso.

Essa é uma briga que eu compro sem hesitar. Para que essa guerra contínua contra atos criminosos tenha resultados profundos e permanentes é urgente ouvir a história e o presente daqueles cuja identidade e cultura foram sufocadas por séculos. É preciso lutar, sim. É também urgente fazer silêncio para ouvir.

( Algumas recomendações enquanto fazemos silêncio: )

“Quarto de despejo” – Carolina Maria de Jesus
“Evocações” – Cruz e Sousa
“O beijo na parede” – Jeferson Tenório
“Redemoinho em dia quente” – Jarid Arraes
“Olhos d´água” – Conceição Evaristo
“Assim se benze em Minas Gerais” – Edimilson de Almeida Pereira
“Pequeno manual antirracista” – Djamila Ribeiro
“Esse cabelo” – Djaimilia Pereira de Almeida
“Saber do Negro” – Joel Rufino dos Santos
“Um defeito de cor” – Ana Maria Gonçalvez
“Um Exu em Nova York” – Cidinha da Silva
“O crime do Cais do Valongo” – Eliana Alves Cruz
“Pivetim” – Délcio Teobaldo
“O racismo explicado a meus filhos” – Nei Lopes
“Triste fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto
“O olho mais azul” – Toni Morrison
“Sem gentileza” – Futhi Ntshingila
“Pesado demais para Ventania” – Ricardo Aleixo
“Corvo Correio” – Isabel Cintra
“Que cabelo é esse, Bela?” – Simone Mota
“Tambores pra N’zinga” – Nina Rizzi
“Outra educação é possível” – Luana Tolentino

Para não esquecer: racismo é crime.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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