A presença humana nos oceanos é tão antiga quanto a própria história da civilização. Com o avanço da tecnologia e o crescimento da demanda global por pesquisa, turismo e exploração marítima, até mesmo os ambientes mais remotos da Terra, como a Antártida, se tornaram palco da atividade humana.
O que antes era um território praticamente intocado, hoje recebe dezenas de navios por temporada, desde embarcações de pesquisa científica até cruzeiros de luxo. Essa presença, porém, traz consequências inesperadas e silenciosas para os frágeis ecossistemas marinhos do continente gelado.
A revelação inédita de um impacto silencioso
Um recente estudo publicado na revista Frontiers in Conservation Science trouxe à tona imagens inéditas capturadas por uma equipe internacional de cientistas. Pela primeira vez, foram documentados em vídeo os danos diretos causados pelas âncoras dos navios no fundo do mar antártico.
As gravações, feitas com câmeras subaquáticas durante o verão austral, mostram sulcos profundos, camadas de lama remexida e colônias de organismos marinhos completamente destruídas. As imagens são chocantes não apenas pela destruição visível, mas pela clara separação entre áreas saudáveis e zonas devastadas.
Instrumentos de navegação, agentes de devastação
Embora sejam ferramentas indispensáveis para manter embarcações seguras em alto-mar, as âncoras e suas correntes são uma ameaça física direta ao ambiente marinho.
Com tamanhos que podem ultrapassar os dois metros de largura, essas estruturas são capazes de esmagar tudo em seu caminho ao atingir o fundo do oceano. O problema, no entanto, não termina com o impacto inicial.
A movimentação lateral das correntes, especialmente com o balanço das ondas ou o reposicionamento do navio, arrasta a âncora pelo leito marinho, causando um rastro contínuo de destruição.
A vulnerabilidade dos ecossistemas polares
A vida marinha que habita o fundo da Antártida é singular. Muitas das espécies são endêmicas, vivem fixas no substrato e crescem em ritmo extremamente lento devido às baixas temperaturas. Entre os organismos afetados estão esponjas vulcânicas gigantes, algumas das quais podem viver até 15 mil anos.
Além de sua longevidade, essas criaturas exercem funções ecológicas vitais, como filtragem da água, sequestro de carbono e fornecimento de abrigo para outras espécies. A perda dessas estruturas significa o colapso de cadeias alimentares inteiras e o empobrecimento de todo o ecossistema local.
Uma lacuna regulatória preocupante
Apesar da Antártida ser uma das regiões mais protegidas do planeta, a prática de ancoragem ainda escapa à maioria das regulamentações internacionais. Durante a temporada 2022-2023, ao menos 195 embarcações foram registradas ancorando em áreas sensíveis da região.
No entanto, esse número é apenas uma estimativa. A ausência de bancos de dados abrangentes sobre onde e com que frequência as âncoras são lançadas dificulta a criação de políticas eficazes e impede o monitoramento adequado da degradação ambiental em curso.
Recuperação lenta, quando possível
Os danos provocados por âncoras não desaparecem com o tempo. Em regiões tropicais, os impactos podem durar décadas. Na Antártida, onde o metabolismo das espécies é mais lento e a regeneração dos habitats se dá em ritmo glacial, a recuperação pode ser ainda mais longa, ou, em muitos casos, impossível.
O risco de extinção de espécies milenares aumenta conforme mais áreas são afetadas, e o custo ecológico dessas perdas pode ser irreversível.
Uma ameaça invisível no debate ambiental global
A ancoragem é, segundo os próprios pesquisadores, uma das ameaças mais subestimadas ao fundo do mar. É uma forma de impacto que escapa aos olhos do público e muitas vezes também à atenção das políticas ambientais globais.
Ainda assim, seus efeitos são comparáveis aos da pesca de arrasto — conhecida por ser uma das práticas mais destrutivas da atualidade. Ignorar essa realidade significa permitir que a erosão dos ecossistemas marinhos continue, silenciosa e impune, mesmo sob a bandeira da ciência e da exploração consciente.
O futuro da navegação e o dever de repensar práticas
É urgente que a comunidade internacional reconheça o problema e adote medidas concretas para mitigar os impactos da ancoragem. Isso inclui não apenas a proibição em áreas sensíveis, mas também o incentivo ao uso de tecnologias que permitam navegação sem contato físico com o leito marinho.
Além disso, é essencial criar um banco de dados global sobre locais de ancoragem, frequência de uso e impactos registrados, possibilitando que as decisões políticas sejam baseadas em evidências concretas.