O dilema moral explorado por Machado de Assis no conto “A Carteira” reflete questões atemporais sobre honestidade, recompensa e os complexos desdobramentos de um ato aparentemente simples de devolução.
Em sua obra, o advogado Honório se depara com a oportunidade de devolver uma carteira recheada de dinheiro a Gustavo, um amigo. No entanto, apesar da sua atitude correta, a recompensa que ele esperava, a gratidão e o reconhecimento, não vem. Ao contrário, é tratado com desconfiança e até ingratidão.
Em uma conexão surpreendente entre a literatura e a realidade, um caso recente que ocorreu em Palmas, no estado do Tocantins, revigorou o debate sobre o valor da honestidade no contexto moderno, agora imerso em tecnologias e complexidades financeiras. Um motorista autônomo, após devolver R$ 131 milhões que foram transferidos erroneamente para sua conta, decidiu recorrer à justiça, solicitando uma recompensa de R$ 13 milhões, equivalente a 10% do valor devolvido.
Caso do motorista de Palmas e o pedido de recompensa
O motorista de Palmas, ao devolver os R$ 131 milhões transferidos por engano, relatou que o banco sequer o agradeceu. Em vez disso, ele foi tratado com desconfiança, e o gerente chegou até a ameaçá-lo, exigindo a devolução imediata.
Além disso, o banco migrou sua conta para uma categoria VIP, cobrando uma mensalidade de R$ 70 sem sua autorização, o que gerou ainda mais desconforto. O motorista alegou que o incidente teve impacto psicológico significativo, agravado pela cobertura da mídia.
No contexto jurídico brasileiro, a devolução de bens “encontrados” é tratada no Código Civil, que estabelece regras claras sobre o que fazer quando se encontra algo de valor. O artigo 1.233 trata da “descoberta” de objetos sem dono conhecido, obrigando o descobridor a entregá-los à autoridade competente. Caso ninguém reivindique a propriedade, o descobridor poderá adquirir a posse do bem.
Este conceito de “descobrimento” se aplica ao caso do motorista de Palmas, que argumenta que os R$ 131 milhões foram de alguma forma “encontrados” em sua conta. Embora o valor tenha sido transferido por erro, a analogia com um bem encontrado é válida, considerando que o motorista não tinha conhecimento da origem do montante. Para ele, seria justo que o banco lhe pagasse uma recompensa, considerando o impacto que a devolução teve em sua vida.
Casos precedentes
Este não é o primeiro caso que envolve a descoberta de um bem de valor significativo e o pedido de recompensa. Um exemplo famoso envolveu um trabalhador que encontrou uma obra de arte desaparecida no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Embora a pintura tivesse um valor estimado entre 40 e 60 milhões de reais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o trabalhador não tinha direito a uma recompensa, já que a obra obteve ao próprio teatro e, durante os trabalhos de restauração, a descoberta foi surpreendente.
Outro caso famoso envolveu um marceneiro que encontrou quadros descartados na USP. Mesmo que as obras tivessem um valor artístico específico, a decisão judicial foi de que ele não tinha direito a uma recompensa, pois os quadros foram descartados pela própria universidade, e o trabalhador não correu risco significativo ao encontrá-los.
Esses exemplos demonstram que, embora haja uma expectativa de recompensa em algumas situações, as cortes brasileiras têm sido rígidas na análise do que caracteriza um “achado” legítimo, especialmente quando se trata de bens pertencentes a instituições ou de valor artístico.
Assim, a vida imita a arte, ou a arte nos prepara para os dilemas da vida, sempre em busca de um equilíbrio entre o certo e o justo.