Em 1962, no auge da Guerra Fria, os Estados Unidos estavam em um confronto constante com a União Soviética, tanto em termos ideológicos quanto militares. Com uma geopolítica marcada por tensões e disputas de poder, o governo dos EUA empreendeu uma série de projetos secretos na tentativa de se antecipar a qualquer movimento soviético.
Um desses projetos foi o Camp Century, uma estação de pesquisa subterrânea escondida sob a espessa camada de gelo da Groenlândia. Mas o que inicialmente parecia ser uma instalação científica comum logo se revelou algo muito mais estratégico e clandestino: uma cidade secreta no gelo, com objetivos militares que só se tornaram públicos décadas depois.
Contexto da Guerra Fria e o surgimento de Camp Century
Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética estavam em uma corrida armamentista constante. A Groenlândia, com sua proximidade ao Ártico, tornou-se um ponto estratégico no plano militar dos EUA. O governo dos EUA, temendo um ataque direto da União Soviética, decidiu construir uma base militar avançada, camuflada sob o gelo da Groenlândia, que funcionaria como um posto de lançamento de mísseis nucleares.
A instalação foi chamada de Camp Century, e seu propósito oficial era a pesquisa científica, mas, na realidade, era um local de testes para o Projeto Iceworm, uma rede subterrânea de túneis para lançar mísseis com precisão, sem ser detectado pela vigilância soviética.
O que era o Camp Century?
Camp Century não era apenas um posto de pesquisa; era uma verdadeira cidade sob o gelo. Construída em uma camada de gelo de 8 metros de espessura, a base estava equipada com toda a infraestrutura necessária para sustentar os soldados e cientistas que a habitavam, incluindo dormitórios, laboratórios, refeitórios, ginásios e até um reator nuclear que fornecia energia para a base.
A cidade subterrânea foi construída com uma rede de túneis, onde cerca de 200 homens podiam viver por meses sem precisar sair à superfície.
Os engenheiros dos Estados Unidos usaram tecnologia de ponta para cavar túneis no gelo e construir a base. Para muitos, a vida no Camp Century foi menos árdua do que se imaginava, com boas condições de vida, comida de qualidade e até lazer, como jogos de cartas e filmes à noite.
Porém, o isolamento e o ambiente inóspito afetaram psicologicamente alguns dos habitantes, criando uma tensão constante entre a rotina e a necessidade de manter segredo sobre o verdadeiro objetivo da base.
Legado e relevância contemporânea
O legado científico do Camp Century é inegável, pois ele contribuiu significativamente para os campos da glaciologia e paleoclimatologia. As descobertas realizadas lá, como os núcleos de gelo, continuam a influenciar nossa compreensão do clima e da dinâmica das camadas de gelo.
Além disso, o Camp Century se tornou um símbolo das complexas interações entre ciência, tecnologia e política durante a Guerra Fria. Embora a base tenha sido abandonada, o impacto de suas pesquisas e os vestígios de seus resíduos continuam a ressoar no cenário científico e ambiental.
Projeto Iceworm
O principal objetivo do Projeto Iceworm era testar uma rede de túneis subterrâneos que pudessem ser usados para lançar mísseis nucleares de forma mais eficaz contra a União Soviética.
A ideia era criar uma rede de túneis que cobrisse uma área do tamanho do Alabama e fosse capaz de esconder e lançar até 600 mísseis nucleares. O Projeto Iceworm foi realizado de maneira ultra-secreta, e muitos dos envolvidos, incluindo o médico Robert Weiss, não sabiam do propósito militar do acampamento até que as informações vazaram.
Apesar de as intenções de lançar mísseis nunca terem se concretizado no local, o projeto foi um exemplo de como as tensões da Guerra Fria levavam as nações a experimentar métodos audaciosos de defesa. O projeto também incluiu tentativas fracassadas de criar um sistema de ferrovia subterrânea que ajudaria a transportar esses mísseis, o que hoje é visto como um esforço falho, mas igualmente ambicioso.
Pesquisa científica
Apesar de seu uso militar, o Camp Century também se destacou por suas contribuições científicas, especialmente nas áreas de geofísica e paleoclimatologia. Cientistas usaram a base para realizar pesquisas sobre a camada de gelo da Groenlândia, perfurando um núcleo de gelo de 1.390 metros de profundidade.
Esse trabalho resultou em dados que ajudaram a entender as condições climáticas passadas, estabelecendo as bases para a paleoclimatologia moderna.
Além disso, a base forneceu informações valiosas sobre o comportamento das geleiras, os efeitos do Ártico no clima global e até mesmo sobre as mudanças climáticas de longo prazo. O núcleo de gelo extraído ainda é um dos principais arquivos climáticos, permitindo aos cientistas entender a história do clima terrestre nos últimos 100.000 anos.
Fechamento do Camp Century e seus riscos
Em 1967, o Camp Century foi desativado devido aos desafios logísticos e ao desgaste causado pela pressão do gelo. A base foi lentamente destruída pela pressão do movimento da camada de gelo, e os túneis foram parcialmente comprimidos. No entanto, o fechamento da base não significou o fim de sua história.
Recentemente, com o aquecimento global e o derretimento das camadas de gelo, resíduos tóxicos, como detritos radioativos e esgoto, que foram deixados para trás durante o funcionamento do Camp Century, começaram a ser expostos.
O trabalho científico de monitoramento desses resíduos, liderado por pesquisadores como William Colgan, revelou que, com o aquecimento do planeta, esses materiais podem voltar à superfície e representar riscos ambientais sérios no futuro.