O retorno de Black Mirror, a aclamada antologia de Charlie Brooker, trouxe à tona novamente suas clássicas distopias tecnológicas e inquietantes, e, em sua sétima temporada, não foi diferente.
O episódio “Common People”, que abre a nova temporada, deixou muitos espectadores desconfortáveis, não pela violência explícita ou elementos sobrenaturais, mas pelo horror plausível que ele nos oferece.
Um dos maiores talentos da série sempre foi o seu poder de explorar os medos contemporâneos e exagerá-los ao ponto de se tornarem visões distópicas, mas perfeitamente possíveis. O episódio começa com um cenário familiar, mas logo se transforma em uma experiência angustiante que provoca reflexões profundas sobre o futuro e o presente.
Premissa de “Common People”
A história de Amanda e Mike é simples, mas de uma profundidade perturbadora. Ela é professora, apaixonada por sua profissão e admirada pelas crianças, enquanto ele, metalúrgico, é querido entre seus colegas.
O casal, que leva uma vida simples e estável, vê sua rotina ser virada de cabeça para baixo quando Amanda é diagnosticada com um tumor terminal. A única opção de sobrevivência oferecida é um implante cerebral inovador, prometendo salvar sua vida, mas que vem com um custo, aparentemente acessível: 300 dólares mensais pela manutenção do serviço de uma empresa chamada Rivermind.
No entanto, o que começa como uma medida desesperada para evitar a morte, logo se transforma em uma armadilha impossível de escapar.
A situação piora quando o casal descobre que a cobertura do implante é restrita a uma área geográfica limitada, e o que parece ser uma salvação se torna um cárcere. A verdadeira virada vem quando, após uma mudança nos pacotes comerciais da empresa, Amanda se vê involuntariamente transformada em um veículo publicitário ambulante, com sua mente sendo usada para divulgar anúncios, jingles e slogans sem sua permissão.
A única maneira de interromper isso seria pagar uma versão mais cara do serviço. Nesse cenário, a tecnologia deixa de ser uma aliada para se tornar um instrumento de exploração.
Desconforto gerado
O que realmente causa mal-estar no espectador de “Common People” não é apenas o cenário de uma vida limitada e controlada, mas a forma como a história toca em questões sociais e tecnológicas profundamente reais.
A crítica não é apenas à falta de controle sobre a própria saúde ou ao crescimento descontrolado das big techs, mas também à fragilidade do sistema que nos cerca.
O episódio funciona como uma metáfora para as relações atuais com as grandes empresas de tecnologia. A sensação de impotência diante do poder crescente das corporações é algo que todos enfrentam, seja com mudanças nas regras de serviços de streaming, seja com o aumento das tarifas de operadoras de internet, saúde e outras áreas essenciais.
O mais assustador é perceber que a tecnologia, muitas vezes promovida como um avanço para a humanidade, pode se transformar em uma prisão digital, onde não somos mais apenas consumidores, mas mercadorias.
Além disso, a trama explora a precarização dos serviços essenciais, como a saúde e a educação. Embora a cirurgia do implante cerebral seja gratuita, a manutenção do serviço é um peso constante, que aumenta à medida que o sistema é alterado, como no caso de Amanda.
O que deveria ser uma inovação tecnológica salva-vidas se torna uma burla financeira, fazendo com que os protagonistas tenham que se submeter à exploração das suas próprias vidas.
Crítica social de Black Mirror
Black Mirror tem um histórico de oferecer reflexões sobre o impacto da tecnologia na vida humana, e “Common People” não é exceção. A crítica sobre o neoliberalismo digital está presente ao destacar como as empresas podem transformar a privacidade e liberdade pessoais em commodities.
A exploração do indivíduo é uma constante nas distopias de Brooker, e neste episódio a situação chega ao extremo de transformar a própria mente humana em um produto para os fins comerciais de uma empresa.
O episódio também faz uma crítica ao imperativo da visibilidade online, que muitos enfrentam para manter sua relevância profissional.
O personagem de Mike, que começa a se submeter a humilhações online e a trabalhar mais para pagar os custos crescentes da manutenção do serviço, é um reflexo de como a sociedade exige que as pessoas se exponham cada vez mais para manterem suas fontes de renda, muitas vezes por meio de plataformas digitais.
Neuroimplantes e os desafios éticos
A tecnologia de neuroimplantes é uma realidade emergente, embora ainda distante do cenário mostrado em “Common People”. Iniciativas como o trabalho do cientista brasileiro Miguel Nicolelis e a Neuralink de Elon Musk estão desenvolvendo formas de integração entre a tecnologia e o cérebro humano, com promessas de melhorar a qualidade de vida de pessoas com deficiências ou doenças neurológicas.
Porém, como Black Mirror nos alerta, essa tecnologia pode rapidamente ser transformada em uma ferramenta de controle e exploração.
Neste contexto, surge o debate sobre os neurodireitos, como defendido pelo neurocientista Rafael Yuste. Ele propõe que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja atualizada para incluir direitos específicos relacionados à privacidade mental, proteção contra abusos de tecnologias cerebrais e o direito a uma tecnologia acessível que não intensifique as desigualdades sociais.
Sem uma regulamentação adequada, a possibilidade de uma sociedade dividida em classes com diferentes capacidades cognitivas e de controle sobre suas próprias mentes torna-se uma realidade muito próxima.
Em tempos onde nossa privacidade está sendo constantemente invadida, nossa liberdade reduzida e nosso valor transformado em dados de consumo, “Common People” é um lembrete desconfortável de que o futuro que Black Mirror retrata pode estar mais perto do que imaginamos.