Foto: Léo Martins/Divulgação
Enquanto aprofunda as pesquisas sobre a visão afrocentrada da história do país que serão contadas em livro, o jornalista Tiago Rogero reflete sobre os desdobramentos, a repercussão (até internacional) e a enorme contribuição do podcast “Projeto Querino”, idealizado por ele, na construção da narrativa que resgata o protagonismo de negros e negras. Nesta entrevista exclusiva, ele fala sobre o rigor jornalístico e historiográfico do trabalho contado em oito episódios que envolveu mais de 40 profissionais, a maioria negra, ao destacar a farta pesquisa documental que atesta o enriquecimento da elite às custas da escravidão. “Que mérito há em receber uma herança que foi gerada pelo trabalho escravo, o trabalho dos outros?”
O que tinha em mente quando idealizou o Projeto Querino inspirado no Project 1619, do The New York Times? Imaginava que fosse alcançar tanta repercussão e desdobramentos como o livro que está escrevendo? Fale um pouco sobre ele também.
Tiago Rogero – A gente decidiu fazer uma adaptação para o Brasil, um projeto inspirado no 1619, porque ele é incrível, de vulto, grandioso, tem metas audaciosas. A forma como se posiciona também é muito, muito interessante. A gente sabia que para produzir algo assim precisaria de tempo, precisaria de equipe. Aí eu sempre lembro que, apesar de ser o criador do projeto Querino, apresentador do podcast, foi uma equipe. Foram mais de 40 profissionais que trabalharam na pesquisa, na produção. Entre esses profissionais, cito, por exemplo, a professora de História, escritora e historiadora, Ynaê Lopes dos Santos, que foi nossa consultora de História, a Paula Scarpin e a Flora Thompson-Deveaux, que são diretoras da Rádio Novelo, e foram consultoras narrativas, fora os demais profissionais que foram decisivos. O 1619 foi a nossa inspiração, porque a gente queria algo tão grandioso, de vulto, de tempo para pesquisar, de tempo para maturar as coisas e de tempo para fazer um mergulho profundo na nossa história. É a nossa grande inspiração e a gente diz isso com muito orgulho, mas o Querino é um projeto bem diferente, porque as histórias são diferentes. Tem similaridades entre as duas histórias, mas em muitos pontos elas seguem caminhos diferentes por mais que, por exemplo, o racismo ainda seja uma marca muito forte dessas duas sociedades. Eu sonhava que o Querino pudesse ter a repercussão que teve. Sonhava, mas, sinceramente, não esperava, por entender como o mercado consumidor brasileiro em geral se comporta. O Querino não é um projeto apelativo, não é um projeto de entretenimento. É um projeto jornalístico com muito rigor, muito rigor historiográfico e, no nosso caso, a narrativa precisa se dobrar aos fatos. Não são os fatos que se dobram à narrativa. Para nossa surpresa, a repercussão foi tremenda para um projeto jornalístico conduzido por uma equipe majoritariamente negra com muito rigor. Tem algumas coisas que até podem parecer pro ouvinte frases de efeito, como algumas colocações fortes que a gente faz, mas são todas referendadas por documentos, por produção historiográfica, por apuração jornalística, por checagem. Então, foi algo que nos deixou muito, muito felizes e o livro é o resultado dessa repercussão. Nós fomos procurados por muitas editoras. Foram oito no total, e aí escolhemos a Editora Fósforo. Está sendo um desafio agora, porque ele vai mostrar a pesquisa do Querino que foi muito maior ao mostrado no podcast e, neste momento, estou complementando essa pesquisa, porque tudo pode ser melhorado, acrescido. A gente está em constante aprendizado.
Em todos os episódios do podcast há analogias entre fatos do presente e do passado na construção da identidade do povo negro no Brasil, envolvendo aspectos econômicos, sociais e culturais que atestam o racismo estrutural fundamentado no sistema da escravidão. O protagonismo de negras e negros, como do intelectual Manuel Querino, que dá nome ao projeto, é a saída para quebrar esses grilhões que ainda nos segregam. O que cada um de nós, como cidadão, pode e deve fazer?
Uma das bases do Querino que a gente pensou era sempre esse pé no presente. Primeiro, porque não existe explicação simples para questões complexas, mas muitas das explicações para o que a gente tem vivido nos últimos anos ou porque a gente vive no Brasil – como experiência de ser brasileiro -, podem ser encontradas na nossa historiografia. Não na historiografia que a gente aprende na escola geralmente ou que a nossa geração aprendeu, que era um ponto de vista masculino, branco e europeu. Essa versão é capenga. Ela não dá conta de explicar o Brasil de hoje. Mas quando a gente busca uma versão mais complexa, mais completa, que mostra o que aconteceu, com as nuances do que aconteceu, aquela versão que não é tanto quanto a versão que os governantes, que as elites queriam colocar como a versão oficial, essas histórias ajudam a explicar mais o Brasil. Contar exemplos de pessoas negras sendo protagonistas é uma forma de fazer jus ao que de fato aconteceu, e há muitos documentos, muita pesquisa referendando tudo isso. É também uma forma de fugir desse estereótipo que a gente infelizmente aprende ou aprendia na escola. E quando eu digo isso, sei que há exceções e que há professores que, de fato, aplicam a Lei 10.639, que obriga o ensino de História e cultura africana e afro brasileiros nas escolas. Mas especialmente quando eu cresci e, infelizmente, ainda hoje, no caso de alguns professores, de algumas escolas, é um viés que não dá conta de toda essa complexidade e não mostra essa valorização. Às vezes, cumpre com aquele estereótipo de que, por exemplo, durante a maior parte da história do Brasil, a única forma de existência para a pessoa negra era como escravizada, subserviente, no tronco – que obviamente existia. Mas mesmo aquele escravizado que estava no tronco, ali ele podia ser uma pessoa, tinha agência. Podia ser uma pessoa que, por exemplo, promovia uma revolução interna, como aprender a ler mesmo contra as proibições. Podia professar a fé dele escondido dos senhores. Podia constituir família, mesmo contra uma sociedade que dizia que ele era um bicho, um objeto. Mas ainda assim, ele estava constituindo família, ele estava existindo, ele estava resistindo. Essa é uma forma que a pessoa, mesmo sendo aquele escravizado que estava ali, sendo açoitado, podia ter. No período da escravidão, tinha a possibilidade, por exemplo, de existir um Manuel Querino, que era um homem negro, que nasceu livre, porque os pais dele já eram libertos e conseguiram sua libertação. Havia algumas formas diferentes de conseguir a liberdade, embora, naturalmente, a maioria das pessoas escravizadas no Brasil acabava morrendo ainda como escravizadas. Dentro desse grupo, havia as que conseguiam a própria liberdade também e, aí, seus descendentes naturalmente eram libertos. Então, nesse momento, poderia ter um Manuel Querino, uma Maria Firmina dos Reis, que está presente durante praticamente todo o período do Império no Brasil. Uma mulher negra estava sendo professora, ensinando crianças que não tinham condição de pagar por estudo. Ela era escritora. Foi a primeira romancista brasileira. São formas variadas de existência das pessoas negras que se limitam a esse lugar estereotipado que a gente, infelizmente, aprende, de forma quase única, que é o do escravizado no tronco. É uma preocupação nossa apontar essas coisas.
Juiz de Fora foi considerada a cidade mais escravocrata de Minas Gerais, mas essa história, como tantas outras que você levanta no Querino, nunca nos foi ensinada. Por que é tão importante fazer emergir essa visão afrocentrada do Brasil? Por que é tão importante cada comunidade buscar suas legítimas referências?
Eu confesso que não sabia que Juiz de Fora foi a cidade mais escravocrata de Minas. De todo modo, esse é o tipo de expressão que carrega também uma pegadinha, sabe? Por quê? Mais escravocrata, de certa forma, pode dar a entender que existia uma menos escravocrata. Ou que as outras eram menos escravocratas. Algo que é importante a gente entender sobre a escravidão no Brasil é que era uma sociedade escravista. Dependia da escravidão, se baseava na escravidão. Tem uns dados que a gente traz, por exemplo, no Querino, que são sobre as províncias de Minas Gerais e São Paulo, no século 19, se não me engano nos anos 1830, que mostram que um terço dos chefes de família tinham escravizados. Existe uma imagem que as pessoas têm da escravidão que é a do grande senhor de escravizados ou da grande sinhá de escravizados. Estou dizendo grande não no sentido de grandiosidade dessas pessoas, que são pessoas pequenas, mesquinhas, mas no sentido de grandes propriedades. Eles tinham centenas, milhares de escravizados.
Esses senhores e essas sinhás existiam, mas a regra da escravidão no Brasil quando se olha os números, a maioria das pessoas tinha entre 1 e 3 escravizados, entre 1 e 5 escravizados. A escravidão era algo naturalizado. Juiz de Fora era muito escravocrata, porque Minas Gerais era um estado muito escravocrata. Toda a economia dependia disso. E ao dizer isso, não estou dizendo também que: “Ah, mas então se todo mundo era não tinha outra opção”. Tinha outra opção. Por exemplo, no período da Independência, em 1822, no mundo já se discutia a abolição, já se discutia o fim da escravidão. E havia países que já seguiam por esse caminho, no mínimo, de proibir o tráfico de africanos escravizados. E o Brasil continuava, decidia manter isso. Quando o Brasil finalmente abole a escravidão, em 1888 – observe, eu falei de 1822 as pessoas já discutindo a abolição e os nossos vizinhos da América do Sul vão abolir nos anos seguintes -, no Haiti, ela já estava abolida há mais de 20 anos. Mas aqui, só em 1888, por causa da luta dos movimentos negros, sejam eles de forma institucionalizada e articulada, como o movimento abolicionista, que contou também com a participação de pessoas brancas, ou de forma orgânica, que eram, por exemplo, as fugas nas fazendas. Isso estava acontecendo muito. O Brasil estava à beira de uma guerra civil quando a Princesa Isabel foi obrigada a assinar a abolição. Naquele momento, o Brasil era uma vergonha mundial. Não havia mais no ocidente outra nação, não só independente, que tivesse escravidão. Foi uma escolha mantê-la durante todos esses anos. Por quê? Porque as pessoas enriqueciam com isso. Era extremamente benéfico para elas.
Assim como hoje em dia pessoas enriquecem, tratando seus funcionários sem os devidos direitos trabalhistas ou pagando muito pouco. São relações que a gente vê até hoje nas relações de trabalho no Brasil. Ou então pessoas que, necessariamente, não estão enriquecendo com isso, mas que tratam, por exemplo, suas trabalhadoras domésticas em condições que remetem e muito ao período da escravidão. O interior de Minas tem muito disso. Eu sou mineiro. Sei que existem muitos casos de crianças que são pegadas “para criar” (entre aspas), que são levadas para casa de família para trabalhar e não têm direito de estudar, não têm direito de se desenvolver como ser humano, e ficam ali trabalhando, trabalhando, trabalhando anos sem receber devidamente por isso.
Pessoas ricas do interior de Minas Gerais que se recusam a pagar valores justos para diarista, por exemplo. Que se recusam a cumprir com as regras trabalhistas estabelecidas na PEC das Domésticas. Esses casos estão aí até hoje. Por isso que é importante conhecer essa história, para que a gente possa enxergar ainda mais tudo o que está errado e que possa resolver, para, de fato, caminhar para uma sociedade mais justa para todos nós, e não uma sociedade que beneficie tão poucos. Que deixa esses tão poucos no topo da pirâmide, enquanto uma massa de pessoas, a maioria, na verdade, vive em condições abaixo. Enfim, um país em que mais de 30 milhões de pessoas estão passando fome. Quando a gente olha a cor dessas pessoas são pessoas negras. Por quê? Porque na ponta, no topo dessa pirâmide, está um grupo muito pequeno de pessoas que controlam a riqueza. E esse grupo muito pequeno são pessoas brancas. Por mérito? Que mérito há em receber uma herança que foi gerada pelo trabalho escravo, o trabalho dos outros? Ou que mérito há em, até hoje, explorar as pessoas em condições de trabalho vergonhosas que não seriam aceitas em nenhuma democracia no mundo?
Por isso é tão importante o mote da coalizão negra por direitos. Enquanto houver racismo não haverá democracia. Enquanto houver pessoas no Brasil que não consigam cumprir com a sua cidadania, que não tenham acesso aos serviços de saúde, que sejam assassinadas pela polícia por motivos absurdos e sem nenhuma contextualização, enquanto não tiverem condições de moradia, enquanto não puderem exercer seu direito ao voto de forma livre e não, enfim, constrangida de alguma maneira, não haverá democracia. E o Brasil precisa se tornar uma democracia de fato.
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