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O reencontro entre Roza Cabinda e Henrique Halfeld 150 anos depois

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Enquanto busco inspiração para escrever sobre o reencontro simbólico entre a negra liberta Roza Cabinda e seu ex-escravizador e fundador de Juiz de Fora, o alemão Henrique Halfeld, nesta segunda-feira, a partir das 19h, no emblemático palco do Cine-Theatro Central (ela será uma das personalidades homenageadas com a entrega da Medalha do Mérito Comendador Henrique Guilherme Fernando Halfeld, a maior honraria do município), uma música não sai de minha cabeça. “Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa”, cochicha insistente Ney Matogrosso aos meus ouvidos, em um dos versos da canção “Rosa de Hiroshima”, composta por Vinnicius de Moraes e Gerson Conrad.

Imediatamente penso se não é muito descabido recordar, neste momento festivo, de um fato que remete ao trágico e doloroso uso, pela primeira vez na História da humanidade, de uma bomba atômica, responsável por vaporizar uma cidade, dizimando cerca de 80 mil pessoas em questão de segundos. “Não, não é”, responde uma voz eloquente que chega à minha consciência sem dar trégua me obrigando a releituras. Instigada, quero saber mais e pergunto o porquê. Ela completa: “não bastasse a memória das milhões de pessoas negras mortas, vítimas do genocídio ainda em curso no Brasil desde o período da escravidão, a “Roza de Juiz de Fora” não pode ser igualmente esquecida, inclusive, pela sua potência diante do terror que é o racismo”.

Dou razão à voz. A nossa Roza pacífica, maltratada, sofrida, certamente de raízes originárias de Cabinda, uma das províncias de Angola, na África, implodiu, com sua história, muito mais que a arrogância de um personagem importantíssimo, como Henrique Halfeld, ao ganhar, na Justiça, o direito à liberdade. Em sua dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre, em 2015, a pesquisadora Liliane Campbell de Mendonça destaca os motivos que levaram a então escravizada analfabeta, de 44 anos, e aleijada de uma das mãos, a requerer a alforria, como previsto na Lei 2040, de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, e pelo decreto de 1872 que a regulamentou.

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“A ação teve início em 25 de abril de 1873 e foi concluída em 27 de junho do mesmo ano. O motivo alegado para a ação de liberdade foi a não aceitação por parte do senhor de Roza, da quantia de R$ 400$000 (quatrocentos mil réis), oferecida pela escrava para pagar pela sua alforria”, observa a pesquisadora em sua dissertação. Mais adiante, com base no depoimento do próprio escravizador, ela chama atenção para “intenções camufladas” no processo, ao identificar uma disputa familiar entre Halfeld e dois de seus 17 filhos, que teria começado após a morte de sua segunda esposa, Dona Cândida Maria Carlota, em 1867.

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À época da ação, ele já havia se casado novamente, desta vez com Dona Maria Luisa. Segundo Halfeld, Antonio Amálio e Julio Augusto incentivaram Roza a fugir de sua casa, prometendo-lhe a liberdade, como já haviam feito com outras cinco escravizadas, embora não haja indícios destes outros processos na Justiça, com o objetivo de evitar que servisse à sua nova esposa.

Outra possibilidade, porém, para o interesse dos filhos, estaria na relação de proximidade que Roza mantinha com eles construída pelos laços de convivência. Laços, inclusive, que podem explicar a origem do dinheiro para a compra da alforria depositado antecipadamente e para outros R$ 2$000 (dois mil réis) pagos como impostos à coletoria, afinal, era pouco provável que sua atividade como doméstica lhe permitisse ter essa quantia, observa a pesquisadora em sua dissertação.

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O valor, no entanto, era considerado baixo pelo escravizador, ao argumentar que Roza já havia sido avaliada em 1.200$000 (um conto e duzentos mil réis) antes de sofrer a deficiência na mão. Na nova avaliação, feita durante o processo que teve como referência os R$ 400$000 descritos no inventário de Dona Cândida Carlota, os especialistas chegaram ao preço de R$ 300$000 (trezentos mil réis) que deveriam ser pagos a Halfeld e ponto final. Tempos depois de vencida a ação, ela ainda pleiteou e ganhou o ressarcimento dos R$ 100$000 (cem mil réis) depositados a mais. “Roza saiu vitoriosa mesmo tendo um senhor influente, o que prova que as leis nem sempre estavam a favor dos interesses da elite”, escreve Liliane de Mendonça.

 

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“A força viva da nossa ancestralidade”

Se “uma bomba sobre o Japão fez nascer o Japão da paz”, como completa Zizi Possi aos cochichos de Ney Matogrosso em meus ouvidos, na música “A paz”, de Gilberto Gil e João Donato, a entrega da medalha a Roza Cabinda, em 2023, encerra um imbróglio iniciado no ano passado, quando um grupo de manifestantes se posicionou contra a intenção da Prefeitura em homenageá-la, sob alegação de que ela estaria sendo submetida a mais um ato de violência, uma vez que a honraria recebe o nome de seu ex-escravizador.

Frente ao impasse, o Executivo municipal desistiu da homenagem e instituiu a criação do Fórum de Debates Roza Cabinda que, além de decidir pela outorga ou não da medalha, teve também como objetivo “promover pesquisas, estudos e debates, com o intuito de aprofundar o conhecimento do passado de Juiz de Fora, de suas dívidas históricas e de seus compromissos com um futuro de igualdades e de oportunidades”. Por unanimidade, até porque nenhum representante do grupo dos contrários se candidatou a participar das discussões durante 180 dias, a decisão do Fórum estará evidente quando a presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir), Marilda Simeão, subir ao palco do Central para receber a medalha em memória de Roza Cabinda.

“A Roza representa para o Movimento Negro Unificado (MNU) poder, justiça e liberdade. A justiça para todos, o poder de estar vivo e pleitear seus direitos e a liberdade almejada por todo mundo. Ela vem na contramão da história que diz que éramos muito passivos, como se não tivéssemos lutado bravamente pela nossa liberdade. Ela é também o poder da resistência, porque atravessa quase dois séculos e continua viva”, afirma Marilda.

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E completa. “Ela une os movimentos sociais negros, faz uma pesquisadora, em seu mestrado, descobrir 14 escravizados na mesma condição para comprar sua liberdade. Roza diz muito do nosso passado e de que forma essas mulheres estavam aqui. Fala, principalmente, da resistência do povo preto em Juiz de Fora. O MNU onde quer que esteja leva a história da Roza e do Negro Theóphilo. Foi preciso criar um fórum para que ela recebesse uma medalha nesta cidade. Roza representa a força de nossos ancestrais, nos empurrando para a vida e nos dizendo: ‘não pare nunca. Atravessei dois séculos. Quem é você para poder parar agora? Qual é a sua história? Roza é a força viva da nossa ancestralidade”.

Por isso, amanhã, um grupo de antirracistas estará vestido de branco em frente ao Cine-Theatro Central, durante a entrega da medalha, para reverenciar a cultura negra, e participar ativamente de um novo e lindo capítulo da história do povo que, verdadeiramente, construiu essa cidade. Roza é um convite à reflexão sobre o simbolismo de Sankofa, nos levando a mirar o passado para ressignificar o presente, a fim de construir o futuro de igualdades que tanto sonhamos.

Junte-se a nós.

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