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Não temos essa vida toda pela frente

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“Não consigo respirar”.

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Perdi a respiração quando soube que a frase acima – dita mais de 20 vezes antes do afro-americano George Floyd morrer sob custódia da polícia em Minneapolis, nos EUA -, foi objeto do quadro “Quem quer ser um milionário” no programa de um líder de audiência como Luciano Huck. Não vou entrar em detalhes sobre o caso de violência extrema, ocorrido em 25 de maio de 2020, que gerou protestos em todo o mundo, porque dói demais revivê-lo. Realmente perco o ar com as lágrimas que ainda me sufocam.

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Tampouco vou julgar o pedido de desculpas que o apresentador fez por ele e por sua equipe (que não deve ser pequena), no domingo passado, após ter sido bombardeado duramente nas redes sociais. Huck atribuiu à falta de letramento antirracista o “enorme vacilo” – nas palavras dele – pela inclusão de uma pergunta tão descabida que remetia à dor de Floyd e de milhões de pessoas em um quadro de puro entretenimento. Embora não acredite que seja apenas um caso de banalização da violência, como ele também argumentou, mas de incrível banalização da desumanidade, uso este episódio para trazer à tona a temática da morte.

Morte que, há oito dias, abraçou subitamente, através de uma parada cardiorrespiratória, a jovem jornalista Natália Romualdo. Ao lado de Maristela Rosa, ela se consolidou como uma das vozes juiz-foranas mais potentes contra o racismo, por meio do canal Papo de Preta, no Youtube, com seus mais de 182 mil inscritos, e do perfil no Instagram com 120 mil seguidores. Estive com as duas pessoalmente durante reunião em meu antigo escritório pouco antes do início da pandemia. A lembrança que guardo delas é indissociável das palavras sorriso, perseverança e determinação.

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Assim, não poderia deixar de mencionar a lacuna que se abre com a partida de Natália, ao mesmo tempo em que é preciso celebrar sua presença nesta dimensão. O trabalho que ela realizou mesmo sendo tão jovem preencheu um espaço vital, para impulsionar tudo o que ainda virá decorrente do letramento antirracista, capaz de tornar desnecessários pedidos de desculpas, como o de Luciano Huck, que só reforçam a urgência das propostas afirmativas, para a promoção da igualdade racial dentro e fora das empresas.

Deixo a Natália um singelo agradecimento pela oportunidade de aprender com seu legado amplamente documentado no universo digital, assim como de seguir aprendendo com sua morte. Afinal, uma despedida aos 29 anos de idade não apenas remete à brevidade da vida como ao desafio de viver no tempo presente, bem distante das experiências ainda que vívidas do passado e da ansiedade por um futuro que nada tem de concreto. Desde que me enveredei pelo precioso livro “Os quatro compromissos”, do tolteca Don Miguel Ruiz, tenho procurado fazer da morte uma professora como ele recomenda, dada à sua impressionante capacidade de estimular a que nos sintamos vivos, e, assim, caminharmos com firmeza inabalável em direção à nossa mais profunda e genuína verdade, para expressá-la ao mundo, como fez minha jovem colega de profissão.

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Não. Não temos essa vida toda pela frente (embora acredite que tenhamos outras em um amplo processo de aprendizagem, inclusive espiritual. Mas por que deixar para outras vidas a expansão de consciência possível no agora?). Firmar a intenção de viver no tempo presente é, portanto, compreender a finitude como motor para uma experiência humana mais pulsante, mais sintonizada com ideais mais elevados de fraternidade e amorosidade. Se posso morrer a qualquer momento, por que semear discórdia, guardar rancor e ressentimento, praticar violência, como o racismo e o preconceito de qualquer natureza?

Assim, ter a morte como professora é ressuscitar diariamente para uma vida com mais significado. “Podemos começar cada dia dizendo: ‘estou acordado, vejo o sol. Entregarei minha gratidão ao sol, a tudo e a todos, porque ainda estou vivo. Mais um dia para mim”, escreve Don Miguel Ruiz. A compreensão profunda de que não viveremos essa vida para sempre também está presente no belíssimo filme recém-lançado na Netflix: “Pinóquio por Guillermo del Toro”, que balançou meu coração.

O boneco de madeira que ganha vida, morre e ressuscita diversas vezes descobre através das próprias experiências o que é ser humano e o porquê ele nunca será um menino de verdade. “Nenhum filme fala de vida se não falar de morte”, observa no making of o diretor de animação, Mark Gustafson, que divide a direção do longa com del Toro. Por ser extremamente consciente de si, Pinóquio não apenas revela-se ao mundo como transforma para melhor a vida de todos que convivem com ele, levando-os a abandonar pesos mortos e crenças limitantes que só atrasam o desenvolvimento de suas consciências como gente.

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Como diz a personagem que encarna a morte no filme, “o que faz da vida humana preciosa e significativa é sua brevidade”.

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