A democracia brasileira está seriamente ameaçada com a preponderância de uma mentalidade que coloca em descrédito outras instituições que são base para a saúde de um sistema de governo que nos custou, historicamente, tão caro, e que ainda não está totalmente consolidado. Ainda mais se considerarmos o panorama pouco animador das democracias na América Latina. Não precisamos ser cientistas políticos, porém, para dimensionar o tamanho da ameaça, mas convenhamos.
Um país cuja “cultura de poder” está estruturada sob o modelo de mais de 300 anos de escravidão – tendo sido um dos últimos do mundo a abolir a escravatura, assim mesmo debaixo de muita pressão externa -, e que menosprezou e ainda menospreza os que de fato construíram com o trabalho e a vida essa nação, o resultado das urnas não apresenta novidade alguma. Acredito até que devíamos agradecer, afinal, nunca antes na História desse Brasil a verdade esteve tão escancarada. Agora, só não enxerga mesmo quem não quer.
Somos a nação do racismo nada velado, da hipocrisia em relação a preconceitos de toda ordem (gênero, credo e classe social para citar alguns), da mediocridade que condena os pobres e não a pobreza, da xenofobia, da desigualdade pautada em números concretos e absolutos, a exemplo dos que apontam que 0,1% da população brasileira detém mais de 90% de todo o dinheiro hoje depositado em bancos. Ou, ainda, da concentração de 50% de toda a terra produtiva desse gigante de dimensões continentais sob o domínio de apenas 1%, conforme alerta feito pelo economista Eduardo Moreira nesta semana em suas redes sociais.
Quem, conscientemente, diante deste panorama, ousa dizer que o modelo escravocrata acabou? Que o resultado das eleições chega a ser preocupante? Doa a quem doer, fato é que estamos condicionados como sociedade, ainda que de forma inconsciente, a usar como parâmetro o mesmo sistema de crenças que, durante séculos, cerceou a liberdade e sentenciou à morte milhões de pessoas em troca de privilégios para outras pouquíssimas.
Se é que podemos falar em alguma novidade histórica neste contexto, ela nada mais é do que a exacerbação no número de escravizados com o agravante de que agora isso independe de raça, porque segrega também por gênero, orientação sexual, religião, idade e classe social. Estamos todos, quase que indistintamente, aprisionados pela impossibilidade de ser quem essencialmente somos.
Perplexa, boa parte das pessoas que se julgam de bem ainda prefere fazer vistas grossas ao que está diante de seus olhos: o que se dá no Brasil ainda é remake do modo como agimos no passado, varrendo memórias importantíssimas para debaixo do tapete, adotando políticas públicas e de mercado excludentes, abusivas e autoritárias numa tentativa bizarra de “embranquecer” nossa desumanidade. Para piorar, a consequência de tudo isso é que estamos sob o domínio do medo que tem como principal mazela a paralisia, a inação.
Essa falta de atitude está diretamente relacionada à cegueira providencial. Só enxergamos aquilo que queremos, e sabe por quê? Porque enxergar significa se envolver, tomar atitude, agir, se comprometer. Afinal, o oposto do medo não é a coragem. É o amor. E quem ama, age. Vai à luta com o que tem e com o que pode fazer. De resistência, posso dizer sem medo de errar, que nós, negras e negros, entendemos muito bem, porque é baseado nela que temos sobrevivido há centenas de anos neste país tão desumano para nossa raça. Mesmo diante deste cenário desastroso, nunca nos comportamos como vítimas, embora sejamos, nas piores estatísticas sociais, boa parte delas.
Os crescentes movimento negro e o de minorias que conquistam cada vez mais espaço e empatia não me deixam mentir. Por isso, escrevo, para além das pessoas do meu convívio que se assustaram com o resultado das urnas, que estamos diante, ao contrário do que se acredita, de um momento único, próximo como nunca estivemos da realidade nua e crua. O inimigo continua o mesmo, mas agora, temos a oportunidade de compreender que escravizados estamos todos nós. Enquanto o Brasil não for bom e justo para todos não será igualmente bom e justo para ninguém.
Seja pelo que ainda fazemos, seja pelo que deixamos de fazer, a responsabilidade pelo que aí está é toda nossa. Podemos, porém, agir diferente de agora em diante, mas para isso, é preciso abandonar a zona de conforto e despertar para a verdade da vida. Não estamos neste planeta a passeio. Precisamos expandir nossa consciência individual e coletiva. Hora de acordar para a dura realidade e nos comprometer ativamente com ela, colocando em prática o que de melhor sabemos e podemos fazer como gente, para transformá-la. Menos falação e mais ação amorosa, porque não adianta saber as línguas dos homens e dos anjos. Sem amor, nada, nem ninguém, nem nação, nem planeta prospera. Tudo se deteriora. Inclusive a democracia.
CONTINUA NO PRÓXIMO DOMINGO