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Vivendo de amor

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“O amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar. Meu trecho favorito do Evangelho segundo São João é o que diz: ‘Aquele que não ama ainda está morto’”. As palavras de bell hooks, escritora, artista e ativista antirracista norte-americana, morta em 2021, que abrem o artigo intitulado “Vivendo de amor”, ecoam forte em especial neste dia em que cristãos de todo o mundo celebram a vitória da luz sobre as trevas.

Até antes de encontrá-lo, enquanto preparava o tema de minhas apresentações sobre o protagonismo da mulher negra em palestras e participação em eventos em Juiz de Fora, Tabuleiro e Piraúba, durante o mês de março, não havia pensado com mais profundidade no impacto que a escravidão provocou e ainda provoca sobre a nossa capacidade de viver abertamente esse verbo que a despeito da poesia, é transitivo direto. hooks cita, inclusive, as palavras de M. Scott Peck ao definir que o amor é ‘a vontade de se expandir para possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra pessoa’, sendo, ao mesmo tempo, uma intenção e uma ação.

“Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, ‘feridos até o coração’, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e, consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Ferido naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os afro-americanos”, reflete bell hooks. Por isso, em toda oportunidade possível, insisto em trazer essa temática à tona, como forma de resistir a tudo o que ainda nos aprisiona, nos empurra para a escuridão do sepulcro de uma sociedade racista e hipócrita.

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Dias atrás, durante lançamento do livro sobre Maria Firmina dos Reis, da escritora, Renata Di Carmo, em evento promovido pela Funalfa, em parceria com a Bambual Editora e a Livraria Quarup, a especialista em Comunicação, Nádia Rebouças, radicada em Juiz de Fora desde o ano passado, relembrou a campanha desenvolvida pelo Ibase, em 2005, com a seguinte provocação às pessoas brancas: “onde você guarda seu racismo?”

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Muitas, ouvidas à época, em vídeo disponível na internet, responderam abertamente que o guardavam bem dentro delas, enquanto outras afirmaram que não faziam a menor ideia. Em entrevista concedida à Folha de S. Paulo, recentemente, o sociólogo Muniz Sodré aponta que o grande mecanismo do racismo na sociedade brasileira é a sua negação, afinal quem se declara racista? Nenhum governo, nenhuma instituição admite e, invariavelmente, os mais atrozes racistas negam que o são até a morte.

Em vez do termo racismo estrutural (se fosse estrutura seria fácil desmantelá-la, inclusive por termos um Movimento Negro forte e aguerrido, sobretudo a partir dos anos 1970), Sodré propõe outro: “forma social escravista”, que se deu no pós-abolição, caracterizada pela intersubjetividade e institucionalidade.

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“Ela é aparência, mas isso não quer dizer que seja uma ilusão. As aparências existem e continuam a existir por ter força, e é um erro querer lidar só com o que é material, concreto. Na forma social, falo de uma aparência que a sociedade quer ter sobre si mesma: as classes dirigentes querem se ver como brancas, europeias e cristãs, sem ter nada a ver com negros”, explica o sociólogo na entrevista ao jornal.

Por isso, neste domingo de Páscoa, a proposta que levanto como reflexão capaz de nos levar à ressurreição para novos paradigmas bem mais humanos passa, necessariamente, pela expiação de reconhecer o quanto se nega o racismo, a começar pela própria consciência. Assim, como gesto concreto, se pergunte amorosamente hoje, em algum momento desse dia luminoso: onde guardo o meu racismo? Acolha a resposta com maturidade, seja ela qual for, sem se julgar, afinal, quer sejamos negros, indígenas, brancos e amarelos, somos todos (os de boa vontade, claro) reféns de uma ilusão separatista que nos impede de experimentar o amor em profundidade.

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Os casos cada vez mais recorrentes de pessoas em trabalho análogo à escravidão em pleno século 21, assim como crimes rotineiros de injúria racial, as diminutas dependências de empregadas em prédios sofisticados da “arquitetura moderna” que tão bem reproduzem o modelo das casas grandes e senzalas, assim como diversas outras práticas mais sutis adotadas no dia a dia por pessoas “de bem” devem servir de alerta para  “ o fascismo da cor” (título do livro recém-lançado por Muniz Sodré) que se institucionalizou entre nós, brasileiros.

bell hooks nos recomenda o amor como forma de resistência e cito também as palavras do sociólogo: “o principal modo de combater o racismo é o pensamento da aproximação, que é mais completo. É o morar junto, a vizinhança na escola, no trabalho, nas relações amorosas. A aproximação está em qualquer unidade que se possa construir, e o racismo se exacerba quando os diferentes estão próximos. O Brasil já é um país que tem as oportunidades de aproximação pela própria heterogeneidade da população. Temos que pensar as diferentes formas de existir no Brasil e aprender com elas”.

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