“Quando criança, queria ter um cabelo que balançasse de um lado para outro”, disse, durante um dos encontros da formação na Firminas – Academia de Liderança para Mulheres Pretas que fiz ano passado. E minhas memórias não estavam só. No subgrupo que participei com seis mulheres de diferentes cidades do país, todas bem mais jovens, lembranças muito doloridas da infância e adolescência estavam diretamente emaranhadas pelo crespo dos nossos cabelos.
À ausência de representatividade de mulheres negras nos meios de comunicação de massa que dessem, pelo menos, algum referencial de aceitação, seguiam-se, para muitas jovens do grupo, rotinas de alisamento com produtos químicos que deixavam em brasa o couro cabeludo tão delicado, além da sensação constante de nunca ser bonita o suficiente.
Quando não se pode ser quem se é desde a infância, tendo que compensar externamente na marra algo que é tão natural, como os cabelos, a posição no grid de largada da vida fica bastante comprometida. Por isso, ao revisitar o passado durante a formação, fomos desafiadas a buscar ações afirmativas que dessem resposta à dor infantil.
Foi assim que sugeri: vamos elogiar o cabelo de uma criança negra sempre que a encontrarmos. Se não podemos mudar o que já foi, devemos, ao menos, impedir que o sofrimento se perpetue, sobretudo, agora, que temos muito mais representatividade e orgulho de ser quem somos. A ideia foi carinhosamente acolhida.
Sigo não tendo dúvidas que um simples elogio pode mudar para sempre uma vida que está começando. Palavras têm poder, afinal são elas que nos distinguem como espécie humana. Daí porque estendo a você o convite que dá título para essa coluna. Elogie o cabelo de uma criança negra, como a Valentina Xavier Andrade, a garotinha da foto, que tem três anos. Ela gosta dos seus cachinhos, e diz que eles parecem minhoquinhas.
A importância dos cabelos para o movimento negro
A implicância com o cabelo afro é antiga. Pautado na negação da humanidade das pessoas negras, o racismo estrutural, e ainda hoje estruturante, tem como alvo o ataque a tudo o que representa beleza, componente subjetivo indispensável ao “entender-se gente”. Não por menos, durante a escravidão, ao serem vendidos, negros e negras tinham o cabelo raspado, porque não se tratava apenas de um simples traço físico.
Formas, cortes e adereços utilizados por eles e elas representavam, muitas vezes, suas origens, etnias, religiões e até mesmo seu status social. Raspar a cabeça era, portanto, uma tentativa de desumanização, de anulação da identidade, um ato de dominação. Tanto que na estética negra, particularmente o cabelo afro se tornou símbolo de movimentos de militância política e cultural ao longo da História, como o “Black Power”, o “Black is beautiful”, o rastafári e o Black Rio.
Embora não deva se estabelecer sob os moldes da opressão, afinal cada pessoa pode usar o cabelo da forma que melhor lhe convier, a aceitação pelo que é natural deriva das ações afirmativas de valorização dos aspectos estéticos que configuram a raça negra. Entretanto, a realidade do libertário e recente movimento da transição capilar ainda mostra que há um longo caminho pela frente.
“O cabelo está totalmente ligado à autoestima”, observa a empreendedora Tamires Laurentino que trabalha no salão 100% voltado para mulheres negras, criado, há 15 anos, pela mãe Cláudia Souza. “O serviço predominante é a extensão (entrelace), uma opção à transição capilar. Fazer o big chop, sair da escova progressiva e conhecer o próprio cabelo, porque muitas clientes nem sabem como ele é. Desde pequenas foram apresentadas a um padrão de mulher bonita. Aquela que tem o cabelo liso, comportado, sempre muito chapado”.
O uso frequente de produtos químicos que descaracterizam o cabelo crespo faz com que a simples decisão de não mais usá-los se transforme em outro sério problema de identidade. “É bonito ir para a Internet e fazer discursos de aceitação, só que muitas meninas não conseguem passar por isso. Muitas vão ao salão para continuar escondendo o próprio cabelo, por não se adaptarem, por se olharem no espelho e não se reconhecerem. Isso é recorrente e muito triste. Mudar não é tão fácil para todo mundo”, explica Tamires. Ela mesmo passou por essa dor, e hoje possui uma linha própria de produtos para cabelos crespos.
“Fui rebatendo tudo o que ouvi a minha vida inteira. Na escola, as pessoas me chamavam de ‘neguinha do cabelo duro’, ‘neguinha do cabelo ruim’, ‘do pixaim’. Quem é preta sabe que esse tipo de tratamento mexe com a gente até hoje. Se não rebatesse os pensamentos sabotadores, estaria até hoje odiando o meu cabelo, odiando quem eu sou, odiando cada traço meu que foi dado como errado por conta de um padrão que foi imposto. Sei que não é fácil reverter todo o ódio jogado a troco de nada, mas é sobre começar a se olhar no espelho sob outra perspectiva. O que aconteceu na minha linha de partida não define a minha linha de chegada. O cabelo faz parte disso. A autoestima é construída no dia a dia”.
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“Como a maioria das mulheres negras, minha relação com o cabelo nunca foi das melhores. ‘Cabelo de bombril’ ou ‘cabelo duro’ foram algumas das expressões que permearam minha infância e me levaram a ter aversão aos cachos e a realizar procedimentos químicos dos 11 aos 24 anos, pois não tinha identificação, não era o que via na TV, não era bonito. A transição capilar me permitiu ser uma ‘Ana’ livre, uma mulher de atitude, uma mulher que teve coragem de cortar o cabelo curtinho e não se importar com o que os outros falariam. A transição é um movimento que vai além de ‘modinha’ como costumam dizer. Ela me trouxe de volta pro meu eu, e me proporcionou conectar com minhas raízes, meus ancestrais”.
Ana Carolina Neves de Jesus
“Durante a infância, nunca gostei dos meus cabelos, considerava armado, seco e feio. Não me sentia representada através das novelas (crianças e mulheres tinham o cabelo liso). Meu cabelo estava sempre preso, e, para soltar, comecei a fazer relaxamento com 9 anos, depois fiquei entusiasmada com a possibilidade de fazer escova progressiva. Passava horas no salão, minha nuca era toda queimada, detestava ser escrava da chapinha, mas era a única forma de me sentir melhor. Cansada desta vida e inspirada por muitas mulheres cacheadas, em 2015 iniciei meu processo de transição capilar, cortei meus cabelos curtinho, estranhei e usei peruca. Foi um momento intenso e tenso, mas hoje estou vivendo a melhor fase. Me alegro, me emociono e me acho maravilhosa com volume nos meus cachos. É impressionante como me sinto mais eu, me sinto livre, leve e feliz”.
Claudia Leite
“Se não rebatesse os pensamentos sabotadores, estaria até hoje odiando o meu cabelo, odiando quem eu sou, odiando cada traço meu que foi dado como errado por conta de um padrão que foi imposto. Sei que não é fácil reverter todo o ódio jogado a troco de nada, mas é sobre começar a se olhar no espelho sob outra perspectiva. O que aconteceu na minha linha de partida não define a minha linha de chegada. O cabelo faz parte disso. A autoestima é construída no dia a dia”.
Tamires Laurentino