Precedente que preocupa

Por Estefânia Rossignoli, advogada e professora de Direito Empresarial

Sempre me posicionei favorável a um Direito que acompanhe as necessidades da sociedade e se adapte a ela. Isso permite interpretações extensivas de texto de lei e até mesmo aplicações contra legem, desde que tenha, ao menos, uma justificativa no texto constitucional. Porém, nestes casos, o poder judiciário precisa ter muita cautela para não extrapolar suas funções a atuar como legislativo.

Neste sentido, quero trazer à reflexão a utilização dos institutos da Recuperação de Empresas e Falência para atividades não empresariais, principalmente em relação a associações e fundações. Ao disciplinar os procedimentos de enfrentamento à crise econômica financeira, o art. 1º, da Lei nº 11.101/2005 (Lei de Falências), determina que ela se aplique aos empresários e sociedades empresárias, isto é, apenas para quem pratique empresa.

Por força do art. 966 do Código Civil, para ser atividade empresária, esta tem que ser econômica, ou seja, precisa ter como finalidade principal a busca por lucros, para que estes sejam distribuídos entre os sócios e investidores. As associações e fundações se organizam sem fins econômicos, ou seja, diferentemente de empresas, não buscam lucros e retorno a seus associados ou instituidores. Podem até auferir lucros, mas eles não são seu objetivo principal e quando ocorrem são revertidos para a própria instituição. Da escolha da forma jurídica de sua constituição decorrem várias consequências, entre as quais certas imunidades e benefícios significativos de natureza fiscal. Sem dúvida, esse é um dos motivos pelos quais o legislador não contemplou as entidades não empresárias na Lei de Falências.

Apesar de o texto de lei ser taxativo, a doutrina começou a levantar argumentos que certas associações e fundações assumem importância social, geram empregos e movimentam a economia, devendo ser consideradas agentes econômicos, ainda que exerçam atividade sem finalidade lucrativa. Tal fato permitiria a utilização, principalmente, do instituto da Recuperação de Empresas, afastando-se a rigor do texto de lei.

Antes mesmo da pandemia do coronavírus, em 2019, uma instituição de ensino do Rio Grande do Sul conseguiu o deferimento de seu pedido de recuperação, em segunda instância, mesmo tendo sido uma associação civil por quase toda a sua existência e ter se transformado em S.A. poucos meses antes do pedido. Começava ali o precedente. Mais adiante, agora já vivendo sob a pandemia, em maio de 2020, outra instituição, que não modificou seu tipo e
permaneceu como associação civil, entrou com pedido de recuperação. A 5ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro deferiu o processamento da recuperação judicial e entendeu que a natureza da atividade praticada seria empresarial, sendo este, no meu entender a parte perigosa do entendimento. Posteriormente, mais decisões no mesmo sentido sobrevieram; beneficiando hospitais e clubes esportivos que não possuem fins lucrativos, outras instituições de ensino e, até mesmo, igrejas. O que se vê é que o poder judiciário está jogando às favas o art. 1º da Lei de Falências ou então está tentando modificar o conceito de empresa.

A aplicação extensiva do instituto da recuperação às associações e fundações até possui seu aspecto positivo se pensarmos em uma utilização por analogia e na situação excepcional na qual vivemos. Porém, ao se tirar do conceito de empresa sua parte mais elementar, que é o caráter econômico, o poder judiciário está atuando como legislador e praticamente pondo fim à diferenciação entre cível e empresarial. Ainda que se discuta a pertinência de acabar com tal diferença, esta mudança cabe ao poder legislativo e não ao judiciário.

Estefânia Rossignoli

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