De volta a ‘Black Hammer’ e + duas ótimas HQs nacionais

Por Júlio Black

Oi, gente.

Uma das últimas colunas de 2020 foi sobre “Black Hammer”, aclamada série do canadense Jeff Lemire. Na ocasião, comentamos os dois primeiros arcos do título, “Origens secretas” e “O evento”, com a promessa de voltarmos a tratar da HQ assim que terminássemos os dois volumes de “Era da destruição”.

Com a promessa cumprida, podemos afirmar com toda propriedade e sinceridade que esta é uma das melhores histórias publicadas na década passada. Jeff Lemire é sujeito que vai ser lembrado no futuro como um dos maiores roteiristas de seu tempo, sem esquecer do lado ilustrador.

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Mas vamos lá. Nos dois primeiros volumes, fomos apresentados a um grupo de super-heróis da fictícia Spiral City, representação dos arquétipos de alguns dos personagens clássicos dos quadrinhos da DC Comics, Marvel e outras editoras das Eras de Ouro e Prata. Esses heróis – Abraham Slam, o marciano Barbalien, Menina de Ouro, Madame Libélula, Coronel Weird e a robô Talky-Walky, mais o próprio Black Hammer _ derrotaram o poderoso Antideus e, como “prêmio”, foram parar misteriosamente em uma fazenda numa cidadezinha chamada Rockwood, onde os super-heróis nunca existiram.

Para piorar, eles descobrem que é impossível deixar a cidade depois que um dos personagens morre tentando sair da fazenda, e lá se passam dez longos anos em que eles precisam se acostumar à nova vida. “Origens secretas” e “O evento” dão algumas pistas do que está acontecendo e do motivo que os levou até Rockwood, e terminamos com a chegada nesse novo universo de uma personagem oriunda da realidade original dos heróis.

Pois os dois volumes de “Era da destruição”, que encerra a saga dos personagens, conseguem superar os ótimos arcos anteriores com revelações surpreendentes e a constatação de que Abraham Slam e sua turma ainda têm muito o que sacrificar antes da possibilidade de um final feliz.

Além de seguir com sua homenagem aos grandes heróis dos quadrinhos, Jeff Lemire brinca com a metalinguagem e o conceito de multiverso dos quadrinhos, cruzando narrativas distintas e incluindo personagens de outras editoras _ ou, pelo menos, versões que qualquer leitor minimamente conhecedor do meio vai soltar um “entendi a referência!” no ato da matrícula.

Paralelamente, Lemire aproveita e dá uma cutucada na besta-fera da continuidade quando um dos personagens vai parar em um universo com personagens descartados, ou quando todos vão parar em uma realidade onde os super-heróis nunca existiram. Na visão deste vigarista que vos escreve, não deixa de ser uma crítica à necessidade de reboots e novas origens (retcons) que estamos cansados de ver nos quadrinhos _ e que é representada na história pelos “deuses” (roteiristas e ilustradores) que definem o destino dos personagens quando assumem suas revistas.

Genial é pouco para definir “Black Hammer”, uma HQ que merecia infinitas leituras para absorver todas as camadas que Jeff Lemire colocou ali. A Dark Horse publicou a série nos Estados Unidos, e por aqui ela está nas boas mãos da Editora Intrínseca.

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Agora, vamos tratar de algumas ótimas HQs nacionais que chegaram às nossas mãos nas últimas semanas. Uma delas é “Aquarela”, de André Bernardino (roteiro e lápis) e Vitor Flynn (arte-final e cores), publicada pela Balão Editorial. A graphic novel é baseada livremente em um conto de José Roberto Torero e habita universo do realismo fantástico, quando as pessoas precisam lidar com o surgimento, em pleno Rio de Janeiro, de um mendigo gigante.

No início, a primeira reação é de pânico e incredulidade. O mendigo, porém, nada fala e nada faz, além de surgir misteriosamente por todo o Brasil. Depois de pedir esmola no Rio de Janeiro, ele compra pipoca em Curitiba, mata a sede nas cataratas de Foz do Iguaçu, toma banho no Rio Amazonas, alivia a libido em Porto Alegre.

Sem saber a origem do sujeito, a mídia faz uma ampla cobertura de sua peregrinação, enquanto políticos perplexos criam as explicações mais absurdas para sua existência, criam planos ridículos para tentar prendê-lo e já pensam de forma oportunista em como explorar o gigante nas próximas eleições.

Obviamente não vamos entregar o final, mas “Aquarela” é uma fábula pós-moderna em que o belo trabalho de narrativa e ilustração provoca uma reflexão sobre como enxergamos _ ou melhor, como evitamos enxergar _ um dos mais graves problemas do país: o das pessoas que não são assistidas pelo Estado e perambulam por aí necessitando da ajuda de quem evita encarar um de nossos maiores dramas sociais _ o que fica evidente no desfecho da história.

“Aquarela” pode ser encontrada no site da editora (balaoeditorial.com.br), então deixe de vacilo e peça o seu exemplar.

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Para encerrar, chegou às nossas mãos a segunda edição de “Ménage”, projeto lançado ano passado pelo trio de safadeenhos Laudo Ferreira (“Tianinha”), Germana Viana (“Gibi de Menininha”) e Marcatti (“Frauzio”). Cada edição tem um objeto como tema: no primeiro, as histórias giravam em torno do armário; agora, o livro é o objeto da vez.

A primeira história, de Laudo Ferreira, é a que menos tem a ver com saliências, mas segue tendo a religião como ponto de partida. Ela mostra um futuro em que o Brasil se tornou uma teocracia de religião única, em que todos os livros foram banidos, menos a Bíblia. A palavra dos pastores é a lei, mesmo quando eles usam da “palavra” para abusar sexualmente de mulheres e (provavelmente) homens. A protagonista, uma das poucas pessoas a não aceitarem o status quo teocrático, descobre um novo universo quando o avô oferece a ela a maior das heranças para quem deseja conhecimento e liberdade de pensamento.

Marcatti, por sua vez, continua deliciando os fãs com suas bizarrices e escatologias na história do sujeito que teve a mãe abandonada pelo marido e, por causa disso, é criado por uma “tia” e sua empregada doméstica. Ao completar 18 anos, ele descobre a biblioteca do finado marido da “tia”, cheia de “tesouros” que mudarão a vida do trio.

Enquanto isso, a arretada Germana Viana prossegue com a história dos dois casais liberais (e põe liberais nessa conta) na São Paulo dos anos 50, desta vez inspirada nas aventuras de Arséne Lupin. Um inocente Clube do Livro deixa uma das personagens numa enrascada que pode colocar o arranjo do quarteto em perigo, mas nada que a liberação de desejos e libido reprimidos não resolva.

A próxima edição de “Ménage” terá como tema o prosaico saca-rolhas, e já estamos curiosos para saber o que virá da cabeça desse trio da pá virada. Para quem quiser adquirir os dois volumes de “Ménage”, só correr atrás dessa turma no Instagram (@germana_fazgibi, @laudoferreira ou @marcatti_hq).

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

(EEEEEEEEEEEEEEEEEEEE não esqueça de seguir a playlist da coluna, tem para a turma que assina Spotify e Deezer.)

Júlio Black

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