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Morrissey e as canções que salvaram nossas vidas

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Oi, gente.

A primeira vez que tive a oportunidade de assistir a um show do Morrissey foi no agora distante 5 de abril do ano 2000, no Metropolitan, aquela casa de shows que fica embaixo de um shopping center lá nos cafundós da Barra da Tijuca. Era o tipo de sonho que poucos poderiam imaginar que se tornaria realidade, uma vez que o nosso querido inglês estava sem lançar um novo álbum há quase três anos – e ficaria assim pelos quatro anos seguintes. Mas eis que o ex-vocalista dos Smiths havia abandonado a Inglaterra e se “exilado” em Los Angeles, abraçando de vez a imensa comunidade de fãs latinos que já acompanhavam com devoção suas canções sobre amor, dor, matança de animais, a realeza inglesa, o Reino Unido em geral, boxe, motoristas irresponsáveis e outras gamas de assuntos.

Era a “Oye Esteban! Tour”, que desceu a América do Norte até chegar ao Rio de Janeiro. Com os fãs devidamente munidos de flores para serem atiradas no palco, Morrissey apresentou um setlist que começou matador com “The boyracer” e assim prosseguiu com “November spawned a monster”, “Alma matters”, “Speedway”, “Now my heart is full” e algumas dos Smiths (“Half a person”, “Is it really so strange?”, “Meat is murder” e “Shopfliters of the world unite”). Terminado o show, foi hora de pegar a estrada e, assim como tantos fãs, ter a satisfação de ter visto no palco do Metropolitan aquele que é o maior artista pop vivo – e que ninguém ouse discordar, porque algumas coisas a gente leva muito a sério.

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A torcida por um novo show durou quase 12 anos, até o anúncio de que Morrissey voltaria ao Brasil e se apresentaria na Fundição Progresso, na muito mais acessível Lapa, no dia 9 de março de 2012. O local estava cheio, abarrotado, um calor dos infernos, mas isso não impediu que Mozz e companhia fizessem uma apresentação ainda mais memorável que sua estreia em palcos cariocas. O show teve início com “First of the gang to die”, cantada pelo público como se estivesse num jogo de futebol, e prosseguiu com alguns clássicos de sua ex-banda: “Still ill”, “How soon is now”, “There is a light that never goes out”, “Please please please let me get what I want”, “Meat is murder” e a devastadora “I know it’s over”. Da carreira solo, não faltaram músicas do então mais recente álbum à época, “Years of refusal”: “I’m throwing my arms around Paris”, “One day goodbye will be farewell”, “Black cloud”.

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Clássicos e raridades da carreira pós-Smiths (“Ouija Board, Ouija Board”, “You have killed me”, “Everyday is like sunday” e “Let me kiss you”, entre outras) deixaram os fãs mais uma vez felizes, suados, roucos e com a esperança de que o reencontro não fosse demorar tanto.

E a torcida parecia ter surtido efeito, pois novos shows foram marcados para agosto de 2013, até serem devidamente cancelados devido a vários problemas de saúde enfrentados por Mozz – entre eles, divulgado meses depois, que ele sofria de câncer no esôfago. A esperança diminuiu ainda mais no ano passado, quando “World peace is none of your business” foi lançado apenas para desaparecer das lojas poucas semanas depois, com Morrissey declarando guerra aberta à Capitol Records. Quando menos se espera, entretando, o “maior inglês vivo” resolve voltar aos palcos e, no meio do ano, veio a confirmação de que ele colocou o Brasil mais uma vez no mapa da sua atual turnê.

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Com e sem topete
O terceiro encontro de Mozz com seus fãs estava marcado: terça-feira, 24 de novembro de 2015, no mesmo Metropolitan de 15 anos atrás. Foi dia de mais uma vez pegar a estrada, enfrentar engarrafamentos nas Linhas Vermelha e Amarela, mas mesmo assim chegar a tempo de comer alguma coisa e descer a rampa que leva à plateia. As cerca de oito mil pessoas que foram até a Barra eram de várias gerações, dos fãs que descobriram os Smiths nos anos 80 até a galera adolescente que passou a ouvir Morrissey recentemente. Topetudos (assim como o ídolo) ou não, o que mais se via entre os fãs eram camisas tanto de Mozz quanto de sua ex-banda.

Dez horas em ponto, após meia hora de atraso, Morrissey e banda entram no palco para delírio do público, o cantor saúda a plateia antes de emendar o primeiro e (talvez) maior sucesso de sua carreira solo, “Suedehead” (que muita gente ainda imagina ser dos Smiths; aliás, não faltavam desavisados que sequer sabiam que a banda encerrou as atividades em 1987, ou que esperavam que o show fosse essencialmente calcado nos maiores sucessos do grupo; para nossa sorte, estes eram uma insignificante minoria). A voz do cantor, que dizem ter falhado no primeiro show em São Paulo, estava potente e límpida, e o próprio Mozz se mostrava confiante, com a tradicional autoflagelação com o cabo do microfone.

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Pregação para convertidos
Um show de Morrissey é, essencialmente, a típica pregação para os já convertidos, e isso pôde ser percebido na animação dos fãs com as canções seguintes: “Alma matters”, “This charming man” (The Smiths), “You have killed me” e “Speedway”. Além de presentar o público com várias músicas do último disco, Mozz fez uma apresentação com raridades como “Jack the Ripper”, mais músicas dos Smiths (“What she said”) e mostrou que, mesmo aos 56 anos e com a saúde combalida, está com disposição para briga. Para quem esperava um show dançante, Morrissey mostrou seu lado político em “World peace is none of your business”, “The world is full of crashing bores” (em que o príncipe William e a princesa Kate Middleton são tratados no telão como “idiotas”), “The queen is dead” e “I’m throwing my arms around Paris”.

“Ganglord” foi acompanhada por imagens chocantes da violência policial, e “The bullfighter dies” iniciou a militância contra a matança de animais. Mas ninguém, com certeza, estava preparado para as crueldades com os bichos mostrada em “Meat is murder”, com porcos, bois, vacas, peixes e outros animais sendo mortos de forma que poderia ser considerada sádica.

Show para fãs
Militâncias à parte, poder assistir a um show de Morrissey sempre será uma experiência única. Mais improvável artista pop de sua geração, ele é herdeiro de uma tradição de ídolos da música popular iniciada nos anos 50 e 60 e que se perdeu no caminho, com as gravadoreas apostando cada vez mais no pop descartável, pasteurizado, de artistas que calculam meticulosamente seus próximos “atos de rebeldia” apenas para conseguir mais espaço nos TMZs e Egos da vida. Quando está no palco, Morrissey faz um show para si e seus fiéis seguidores, que conhecem todas as canções e vão vibrar com cada “Swallow on my neck” que aparecer no setlist, com cada aperto de mão, capa de disco que ele assina entre uma música e outra, com cada fã que subir ao palco e abraçar o ídolo.

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Como disseram certa vez, não é fácil ser Morrissey, assim como não é fácil viver nossas vidas ordinárias. Porém, quando estamos todos ali, no mesmo lugar, a vida, a música pop, a idolatria, tudo isso passa a fazer sentido. E nós, que ficamos aqui vivendo um dia após o outro, vamos esperar pelo próximo reencontro com o mais singular dos artistas do mais solitário planeta que existe.

Vida longa e próspera. E obrigado por “Jack the Ripper”.

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