“Years and years”, a minissérie que vê o futuro repetir o passado (e o presente também)

Por Júlio Black

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Oi, gente.

Estamos em mais um daqueles momentos “desabafar é preciso”, muito mais do que simplesmente resenhar. Por isso, o plano inicial de escrever as tradicionais considerações a respeito de três ou quatro séries foi para o escambau.

Porque precisamos falar, escrever, refletir a respeito de “Years and years”, minissérie da BBC que saiu por aqui pela HBO e também está disponível pelo Now. Na verdade, não basta falar, escrever, refletir, recomendar: é preciso se preocupar com a distopia mostrada pelo canal inglês, pois ela está muito mais próxima da nossa realidade que “The handmaid’s tale”, por exemplo, a não ser que você more em determinados países. Muito do que é mostrado em seus episódios já aconteceu de alguma forma, está acontecendo neste exato momento ou é possível num futuro muito próximo. Tipo amanhã, entende?

Para quem ainda não assistiu. “Years and years” começa sua história em nosso 2019, em Manchester, e acompanha pelos próximos 15 anos as desventuras e tragédias e desgraças e pequenas alegrias dos personagens principais, quatro irmãos da família Lyons: um consultor financeiro, uma cozinheira e mãe solteira cadeirante, um funcionário público gay e uma ativista de causas humanitárias. A eles se juntam outros personagens, como a avó do quarteto, o marido do funcionário público que é terraplanista (motivo mais que suficiente para bloquear em redes sociais, imagine manter um relacionamento), uma filha entusiasta do trans-humanismo e por aí vai.

E a próxima década e meia que acompanhamos na minissérie mostra que o que está ruim sempre pode piorar. Países ficam à beira de uma guerra nuclear; o Reino Unido manda um “deu pra ti” para a União Europeia; nações fazem um troca-troca de sanções econômicas que termina com bancos e empresas quebrando em série, e o resultado é mais desemprego, queda na qualidade de vida, pobreza, miséria; a tão temida e prevista precarização das condições de trabalho; avanços tecnológicos que não só desumanizam as pessoas, mas também provocam mais desemprego; os efeitos catastróficos do aquecimento global; crises humanitárias com refugiados de países que se tornaram ditaduras; segregação social-econômica.

Mas tem como piorar, claro. A produção mostra a ascensão de políticos de extrema-direita, representados pela personagem interpretada por Emma Thompson (ótima!), que desprezam a democracia, perseguem jornalistas, espalham fake news, louvam a boçalidade como virtude, se valem de um discurso simplório, posam de outsiders, se dizem a “nova política” para, ao final, apenas aumentar o caos.

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Qualquer semelhança com o que acontece hoje no próprio Reino Unido, nos Estados Unidos, no Brasil, na Hungria, Rússia, não é mera coincidência. “Years and years” talvez seja a obra de ficção mais próxima de nossa realidade. Não à toa, fiquei chocado ao assistir ao primeiro episódio, segundo, terceiro; aí cheguei para A Leitora Mais Crítica da Coluna e mandei a real: “VOCÊ TEM QUE ASSISTIR A ‘YEARS AND YEARS'”. E como é muito bom ter uma esposa que confia nas nossas opiniões e gostos. Ela foi lá, assistiu aos três primeiros episódios, então acompanhamos juntos aos outros três com uma sensação de incredulidade, tristeza, de medo por notar que aquela era uma realidade tão próxima à que vivemos. De deixar um gosto muito amargo na boca mesmo com o final em aberto.

O motivo nem é tão difícil de explicar. O mundo está uma desgraça de se viver, com tanta coisa ruim acontecendo, tanta gente destilando crueldade, falta de empatia, machismo, homofobia, racismo, intolerância religiosa, preconceitos mil. A extrema-direita travestida de defensora da moral e honestidade, mas que persegue e promove difamações e injúrias contra qualquer pensamento diferente, questionador; o desprezo pela democracia; o desemprego; a apatia da população; a negação do aquecimento global, o desmatamento desenfreado; o apartheid social do “mirar na cabecinha” que vem matando inocentes, despudoradamente comemorado por autoridades sádicas/psicopatas.

Tudo isso torna o ato de viver tóxico, difícil, quase insuportável em meio a tanta brutalidade, maldade e ignorância. Viver, hoje, talvez seja suportável porque podemos apelar para o Alprazolam nos momentos mais críticos. Após assistir a “Years and years”, a ideia de encarar o mundo de 2019 pareceu um fardo impossível de se carregar, mas apenas por alguns minutos. Afinal, para meu alívio, tenho comigo A Leitora Mais Crítica da Coluna, Antônio, Django, amigos e alguns parentes que também compartilham do mesmo horror. São essas pessoas que nos fazem seguir em frente, pois nos permitem aquelas pequenas alegrias, compartilham amor, bons sentimentos, risadas, valorizam a arte, a cultura, a importância de conhecer a História, respeitam as diferenças. Uma turma pequena, mas que faz tudo valer a pena.

Sou muito afortunado, aliás, por ter um filho como Antônio, uma criança tão cheia de amor, carinho, bondade, inocência. Ele merece um futuro muito diferente daquele visto na minissérie, assim como tantas crianças que já nasceram neste milênio, que ainda estão por nascer. Tornar esta esfera ridiculamente minúscula em relação ao universo um lugar melhor não é fácil, mas algo precisa ser feito. Por mim, por você, por todos que têm medo de ver o presente e o futuro repetirem o que houve de pior no passado.

O nosso triste presente já tem repetido absurdos que julgávamos suficientemente estudados, registrados, contados em livros, filmes, documentários, nas salas de aula, mas a memória humana é estupidamente curta. Então é hora de cada um fazer o seu melhor, pois a realidade e a ficção já mostraram, continuam mostrando, que tudo pode piorar. Temos aí as memórias do nazismo, do Holocausto, “1984”, a ditadura militar brasileira, “Fahrenheit 451”, Guantánamo, “V de Vingança”, “Admirável mundo novo”, Hiroshima e Nagasaki, “O conto da aia”, o noticiário nosso de cada dia, as áreas de comentários dos sites de notícias. E “Years and years”, que vê o futuro repetir o passado (e o presente também).

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Cena pós-créditos (ou vendendo o peixe)

A coluna está meio deprê? Pois vai lá conferir a playlist da coluna no Sotify, que entre novidades, clássicos, coisas do arco da velha há coisas para elevar o astral, como Jens Lekman, I’m From Barcelona, Teenage Fanclub etc. Se por acaso cair um gótico tipo Sisters of Mercey, aproveite mesmo assim, o shuffle nunca erra.

Júlio Black

Júlio Black

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