Desde que Alice nasceu, Paulo Edson parou de carregar saco de cimento. Largou formão e peneira, pá e prumo, pra carregar mamadeira. Alice veio em boa hora, já que aos 70 não quadra bem a Paulão ficar acocorado em riba de andaime, assentando telha, fazendo beiral e cumeeira. É o avô mais babão a andar pelas cercanias do bairro – vejam só! – Santa Alice. Da outra Alice, que tem pouco de santa e pode ser irresistivelmente endiabrada, é um quase-escravo.
Paulão escuta pouco. Uns 20% só em um ouvido, talvez uns 50 no outro. Responde a tudo com um “hein!?” bem alto. Menos com Alice. Quando a neta fala qualquer coisa, por mais ininteligível que seja, entende cada sílaba. Se ela fala que o “bicão virou gava-mule”, entende na hora que a chupeta se transformou em vaga-lume e agora pisca verde-limão pelos ares da noite pueril. De uma vida na companhia de brutos serventes, sobraram apenas as mãos ásperas dedicadas agora a façanhosas branduras.
Paulão, que ergueu muita casa e cavoucou piscina, fez churrasqueira e varanda, bateu laje e pintou parede, deu pra construir brinquedo. O último foi um carrinho gira-gira, que Alice empurra pra cá e pra lá, os quadradinhos finamente pintados em formas geométricas chamuscando a preguiça da tarde. Não tem pra Pula-Pirata nem pra Lego, negócio da Alice é zunir com seu carrinho de pau. Por que choras, Fisher Price?
Que Paulão foi inigualável mestre de obra, no sentido pleno da palavra mestre, é verdade conhecida e propalada. Mas quem imaginou um criador capaz de tamanhas delicadezas? Quem sonhou o insuspeito Mondrian de dedos rudes e tez trincada de sol? É que diante do milagre da inocência o homem se transfigura. Pois a ele é dada a chance de viver o que apenas sonhara. E aquele ideal, que mesmo tanto tempo soterrado sob os entulhos dos dias de desumana labuta ainda respira, é enfim resgatado por pequenina, vigorosa, inefável mão de criança.