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Lixo monumental

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Veja, Clarice.
A seus pés, os olhos de Chico Buarque em uma cesta de vime.
Os dez dedos encantados de Armando Nogueira.
A fé colorida de Djanira.
Estas as oferendas que lhe deveriam ser rendidas. Não o monte de lixo que os bárbaros da Mureta do Leme despejaram sobre você e seu cão Ulisses.
Antes fosse a ressaca mal-educada de uma festa em sua homenagem. Mas, ah!, não há devoção alguma nas garrafas de uísque largadas ao seu lado. Não são como os baseados depositados na tumba de Jim Morrison em Père-Lachaise ou nas botinas de Bob Marley em Kingston. Ou as flores entregues a Anton Tchekhov em Taganrog, a cerveja servida a Ernest Hemingway no Café Iruña.
Ninguém te venera na noite azeda do Leme, Clarice.
Há apenas o rastro de copos e garrafas plásticas, o mijo dos bípedes, sacolas coloridas, guimbas de cigarro, caixas de suco, vidros espatifados cujos cacos mordem infecções invisíveis no hálito biliar do Oceano Atlântico.
Que reverência reside no latido metálico das latas faiscando na superfície dessas pedras portuguesas, coriscando o pretume da madrugada da Guanabara?
É uma ode à ignorância e à selvageria que se ergue diante de ti. Que bênção seus olhos centenários não terem vivido para assistir à formidável edificação coletiva do mais recente monumento à boçalidade humana.
Deus te guarde bem longe de nós.

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