Domingo estive de novo com Seu João. Aquele dos muitos anos, que fala alto pra caramba. Sempre muito agradável, preocupado com os rumos do país a partir de 7 de outubro. “Eu tenho medo é desse Bolsonaro.” Lá embaixo, na Rua Pinheiro Machado, ao largo do Palácio Guanabara, voam os carros sob a chuva fina: sem praia nem orla nesse dia cinza de agosto, cariocas zanzam como formigas sem rumo, enlatados em seus automóveis e com três peças de roupas uma sobre a outra. 18 graus.
À mesa do apartamento do sexto andar do velho prédio de esquina com a Álvaro Chaves, fumega o café na xícara branca, brilha o pudim – Helena sempre faz pudim e só o pudim da Helena é assim brilhante. Conversamos sobre o “homem da net”, que eu mais tarde deduzo ser alguém da operadora de telefonia, porque “A Helena quer a net aí pra falar com a família dela lá no Ceará, diz ela que dá pra ver tudo o que acontece lá direto do celular, então ele veio aí instalar, mas não dava de jeito nenhum e depois deu”.
Falamos sobre essas futilidades tecnológicas, fascistas, racistas e eleições, as buzinas soando bem longe, a TV a cabo já no jeito para América x Flamengo, quando Seu João suspende a conversa por alguns segundos. Está com a boca aberta num sorriso oval, os olhos vivos estatelados para fora da janela. “Um sabiá”, ele diz, naquele misto de surpresa e alegria. Olhamos e vemos o sabiá sobre o aparelho de ar-condicionado do prédio vizinho. Ele está lá. Mas Seu João, não. Está de volta à infância às margens do Rio Pomba, de onde a mãe tirava água para ferver e coar e beber e cozinhar, de volta à correria entre araçás e angicos e paineiras, onde cantavam outros sabiás e maracanãs e juritis e chororós-cinzentos.
Pela janela, vejo o sabiá sobre o concreto e o aço, um fiapo de capim no bico. “Acho que ele está fazendo um ninho ali”, comento. “Está sim. No outro ar-condicionado, ali do lado, ó”, Seu João detalha. Ouve mal, mas enxerga muito bem. São poucos segundos de pausa entre a observação do nobre Turdus rufiventris e a retomada do papo. Tempo suficiente para que, em seu bico, o sabiá-laranjeira carregue, além do material de construção de seu tugúrio, Seu João para um tempo, senão sem fascistas, livre de arranha-céus, carros velozes e homens da net, quando a velocidade da vida não ia além do tempo do correr do Pomba.