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Neblina

neblina
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É fim de tarde de domingo e eu subo as escadas para escrever a crônica da semana. O cachorro, que andou de tremeliques por conta dos trovões que retumbaram mais cedo, vem junto. Domingos têm pra mim essa cor: a segunda-feira que se aproxima irrevogável vem prenhe da obrigação da escrita, dado que jornal não aceita página em branco.

Penso em escrever sobre a presença dos magnatas das big techs na posse do repugnante homem alaranjado nos Estados Unidos. Ou sobre o “sieg heil” arquitetado pelo igualmente repulsivo dono do ex-Twitter. Ou ainda sobre o grande dilema atual do Governo brasileiro, que reside em fazer do presidente da república um astro de TikTok. Mas tudo isso é pura falta de assunto: temas assim descambam facilmente para uma coluna de opinião, e de opiniões o mundo está mais que cheio.

Abro meu caderninho em busca de alguma anotação que me renda umas 300 palavras. Nada, exceto uma canção inacabada. Procuro na internet uma crônica do Rubem Braga, depois uma da Rachel de Queiroz, na esperança de topar alguma frase que se faça centelha criadora de um novo texto, mas o mecanismo de ignição do meu cérebro parece afogado. “Mais uma crônica sobre o bendito ‘terror da página em branco’ os leitores não hão de suportar.”

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A essa altura eu já considerava a possibilidade de recuperar o cachorro caramelo que há tempos não menciono aqui e inventar para ele uma história qualquer, uma história simples e caninamente humana. É quando olho pela janela e vejo que as cores do quintal, exuberantes após a chuvarada, aparecem agora opacas e morrediças.

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Uma neblina repentina deitou sobre a região do Parque Jardim da Serra seu lençol vaporoso e mergulhou o mundo em uma aura de suave mistério. “Aí está”, penso. “Vou escrever sobre a névoa, assim, meteorologicamente mesmo. Ou talvez como metáfora para os acontecimentos que nos embaçam os horizontes. Ou sobre pessoas que têm o dom de nos turvar os sentidos. É isso. Vou escrever sobre a névoa. Vou começar assim: ‘É fim de tarde de domingo e eu subo as escadas para escrever a crônica da semana’.”

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