Por que estou aqui olhando para as minhas botas sujas?
A três quarteirões há um engraxate. Ele tem uma cadeira de engraxate onde sentam-se homens – nunca mulheres – que calçam sapatos e usam ternos e leem jornais ou vagueiam pelo Facebook enquanto o engraxate faz o seu negócio de engraxate. Os homens saem da cadeira, uma cadeira-trono de onde quando em vez levantam a vista do jornal para observar o movimento, com sapatos reluzentes e prontos para enfrentar outros homens que, esperam, não estejam com os sapatos tão brilhantes quanto os seus.
Mas eu continuo aqui olhando para as minhas botas sujas.
Seria tão fácil cruzar os três quarteirões e me sentar na cadeira-trono e pedir ao engraxate, ei, amigo engraxate, pode dar uma polida nessas minhas botas sujas? e ele então, claro, meu amigo, senta aí que eu vou dar um capricho nessas suas botas sujas, posso dobrar um pouco a sua calça?, e eu, claro, por favor, e então ele faria seu negócio de engraxate e eu logo estaria com a minhas botas como novas, e pagaria o justo preço pelo seu trabalho estupendo e sairia dali com minhas botas reluzentes, mas não para enfrentar homem algum, pois o calçado ideal pra isso são as chuteiras e não as botas.
Seria tão fácil, todavia continuo aqui olhando para as minhas botas sujas.
Por que não cruzo os três quarteirões e me sento logo na cadeira-trono do engraxate e peço que ele faça seu trabalho? Será que tenho vergonha de me sentar na cadeira-trono como fazem os homens de terno? De alguma maneira, será que penso que o engraxate se rebaixa ao se dobrar diante dos homens de terno para fazer o seu negócio de engraxate em troca de um pagamento justo? E eu, quando me pagam para escrever, quando tomo minhas notas, também não me dobro sobre a mesa diante do entrevistado para fazer o meu negócio de escrevente em troca de um pagamento justo? Se somos trabalhadores, eu escrevente, ele engraxate, por que eu não cruzo logo os três quarteirões e o deixo fazer seu trabalho? Será que, sob esse meu pensamento tão óbvio, de que somos ambos trabalhadores que cobramos por nossos serviços, vai um outro pensamento, mudo, encabulado, subterrâneo, que julga que o trabalho do engraxate é degradante? Que é um trabalho menos digno que o meu? Que sentar em sua cadeira-trono é humilhá-lo? Será que eu, humanista, emancipado, independente, progressista, penso isso do meu colega engraxate? Será que eu me julgo melhor do que ele e disso secretamente me envergonho?
Penso sobre essas coisas que vão por baixo do pensamento e sigo aqui, olhando para as minhas botas sujas.