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O que você (não) faz ao acordar?

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É comum que nossa primeira ação do dia nesses tempos hiperconectados seja a perversa antecipação das preocupações cotidianas. Ou o voyeurismo da vida alheia. Se a primeira visão de nossos olhos aos despregarmos as pálpebras é hoje a tela do celular rompendo a penumbra do quarto, algo de muito precioso se perdeu em nossa trilha involutiva.
Qual era a primeira coisa que você fazia ao acordar, leitor nascido no século XX, antes do despertar da era dos humanos hiper-híbridos? Uma oração, talvez? Ou quem sabe, olhando para o teto, refletisse sobre o que acabara de sonhar? Ou alimentaria um sonho mais antigo, na certeza de, ao pular da cama, estar mais perto de sua realização?
Talvez você tateasse a superfície emaranhada da cama e encontrasse ali do lado, com um toque cuidadoso, a tez de uma parte importante de si mesmo. E você despertaria esse corpo externo ao seu com um beijo e quem sabe outro e dentro em pouco vocês estariam desafiando a lei da física que afirma, pueril, que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço.
Ou quem sabe vocês permaneceriam de papo para o ar, sussurrando um para o outro as primeiras desimportâncias do dia. O que você vai fazer hoje? Será que a gente almoça junto? O que vamos fazer pro jantar? Ou discutiriam assuntos mais sérios, ainda e sempre naquele singular tom de voz dos recém-despertos. E as paredes do quarto testemunhariam mudas a beleza insuspeita daquele acontecimento banal.
De minha parte, se lhe interessa saber algo irrelevante, leitor de íris queimada pelas telas azuis, eu costumava rezar. Despertado pelas mãos gentis de minha mãe, repetia em silêncio uma oração decorada e então me levantava para tomar o café com leite e comer o pão com margarina.
Tempos depois, descrente das palavras que memorizara no catecismo, passei a ler: os X-Men de Claremont e Byrne, a Liga da Justiça de Giffen, DeMatteis e Maguire, depois “O Exorcista” de Blatty, “O Iluminado” de King, os primeiros de Paulo Coelho. Do chão ao pé da cama, uma história sempre velava meu sono. E ao acordar, era nela que eu mergulhava antes de tudo.
Hoje, como qualquer escravizado das tecnologias de bolso, a primeira coisa que faço é calar com o dedo o som monótono do despertador do celular às seis da manhã. Mais comum desativá-lo antes que toque. E logo corro a abrir, nesta ordem, e-mail, WhatsApp, Twitter, Instagram. E ali estão todas as informações dispensáveis e todas as mensagens inúteis, misturadas às poucas úteis que poderiam tranquilamente esperar a hora de me transmutar de “homo somnium”, ou seja, o homem que sonha, em “homo tripalium”, o homem trabalhador.
Mas não. Ali estou eu, como você que ora me lê, alimentando a ansiedade de resolver coisas que podem ser resolvidas mais tarde, ou coisas que sequer podem ser resolvidas, ou pior, coisas que não precisam ser resolvidas pois estão bem assim como estão. Onde o livro de Pedro Juan Gutiérrez que nunca termino? Uma profissão de fé espontânea? Onde o silêncio reparador que conservará a minha, a sua integridade mental até que chegue o novo momento de sonhar?

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