Escolhi um banco na porção central do Parque Halfeld para esperar pela minha filha, olhos e ouvidos atentos a qualquer movimentação estranha. Como sabem, ali tem gente levando facada por causa de uma abertura napolitana ou espanhola no jogo de damas, de modos que é melhor não facilitar. Acomodei-me e, vindo do lado de lá, do quiosque centenário, eu o avistei: o cachorro de pelagem curta e cor-de-mel.
Não nos víamos há mais de ano. Sua aparência era bem melhor desde o nosso último encontro. Veio até mim e sentou-se ao lado do banco.
– Quanto tempo – disse eu.
– Muito trabalho recentemente, treinando cães enxotados de apartamentos.
– É mesmo? Aumentou muito o número de abandonos?
– Até que não, desde o ano passado a média parece estável. Mas ainda há muitos humanos colocando na rua animais adotados durante a pandemia.
– E tem mais cão de raça ou vira-latas? Ou devo dizer “Sem Raça Definida”? Ou só a sigla, SRD? Não quero soar politicamente incorreto – falei em tom de franca ironia. Ele não se alterou.
– Essa é uma discussão inútil. Desde sempre nos chamam vira-latas e pouco os importa. Parece-me perda de tempo discutir nomenclaturas absolutamente artificiais. Sei que a língua é viva, mas é patético que queiram impor uma mudança vocabular que não seja nascida de forma espontânea dos falantes, como uma construção natural de uma comunidade em transformação.
Fiquei intrigado com a observação do meu já quase velho amigo, sempre muito eloquente. A vocação para linguista nele eu desconhecia. E ele prosseguiu:
– Além do mais, nós, cães de rua, não nos enxergamos sob esse prisma divisionista. Não pensamos no conceito de “raça”. Isso é uma definição humana para segregar seus iguais. Nós já temos coisas demais que nos separam. Nossas visões de mundo, nossos objetivos de vida… questões que devemos conciliar em busca de um projeto revolucionário de bem comum.
Ele se calou por um instante e correu em direção a um bando de pombos, espantando-os. Talvez não quisesse que nos ouvissem. Dizem que o pombo é um bicho danado de leva-e-traz. Retornou para o meu lado e deu continuidade ao colóquio.
– Há sim, entre nós, cães de rua, o que vocês chamam “cães de raça”. Mas não damos atenção a isso. Criar uma separação baseada em aparências, em traços físicos, só aprofunda as divisões que nos enfraquecem. Ou não sangramos todos da mesma forma? Não foi um de vocês que escreveu “Se nos picais, não sangramos”?
– Isso é Shakespeare?
– Um trecho de “O mercador de Veneza”.
Um linguista e um literato, enfim. A cultura daquele vira-lata caramelo nunca deixa de me surpreender.
– O ponto é que não temos tempo a perder discutindo nominatas. Há coisas muito mais relevantes a serem tratadas. Como posso pensar em nomes enquanto um meu irmão está revirando lixo em busca de comida? Os animais de estimação têm lá seu projeto político de dominação do homem. Nós, cães de rua, temos outro plano, o de retornar à natureza e recuperar a alma do lobo. E não vamos perder nosso tempo argumentando sobre a semântica de expressões inventadas. Que fique com vocês, humanos, mais essa distração.
Dito isso ele se levantou e aprontou-se para partir. Seu pelo parecia mais dourado do que nunca sob os fachos de luz que atravessavam a copa das árvores.
– Vou indo. Sua filha está chegando.
– Como você sabe?
– Sinto no vento o cheiro das roupas dela, que é o mesmo das suas. Vocês dois deveriam evitar esses “bifinhos” artificiais que dão para seu cachorro. São terrivelmente tóxicos.