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Diário de um quarentênico

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Domingo, 22 de março de 2020

7h. Alcanço na prateleira uma edição de 1989 de “Serafim Ponte Grande”, de Oswald de Andrade. Redescubro nesses dias o prazer da leitura pela leitura, sem a obrigação da pesquisa e da avaliação. Na página 46, o trecho “Os desequilíbrios saíram para fora como doidos soltos. A princípio nas janelas, depois nas soleiras das portas. O meu país está doente há muito tempo. Sofre de incompetência cósmica” me prova que lendo assim, como quem não quer nada, aprende-se muito mais.

9h. Preparo o café para mim e a Sra. Guiducci. O pão de queijo de uma marca local dá de dez a zero naquele outro que costumávamos comprar, observamos entre um e outro comentário sobre o tempo horrível que faz lá fora.

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9h25. Aproveitando o programa que o compadre Luiz Henrique Fernandes tem mandado a seus alunos do estúdio de treinamento funcional, faço um pouco de ginástica. Corda, agachamento, tríceps no banco, mais agachamento com passadas largas, abdominais. Gosto de usar o termo ginástica, porque, apesar de démodé, é o que precisamente faço. Ginástica. Mas com tanto agachamento fico pensando se não é um projeto pessoal do Luiz nos transformar a todos em Gracyannes. Gluteus maximus tremem constrangedoramente.

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11h. Saímos, eu e Sra. Guiducci, para comprar provisões para os pais dela. No supermercado não há sinal de tempos de exceção, exceto por uma jovem senhora usando uma máscara que parece um pouco grande para seu mínimo rosto. Não há filas. Não há itens faltando. O papel higiênico inclusive encontra-se em promoção, mas não é o caso de comprar agora. As ruas parecem desertas mesmo para um domingo. Na porta do açougue, a cara do açougueiro é de desolação. Frangos condenados suam gordura na televisão de cachorro. Subo as escadas, deixo as compras sobre a mesa, aceno de longe para meu sogro e voltamos para casa.

13h. Decido grelhar a carne para o almoço. Tempo é o que mais temos nesse domingo virótico. Abro uma garrafa de vinho que está pela metade na geladeira desde a sexta-feira. Deixo respirar até que saia a frustração de uma noite que terminou cedo demais, encurtada à força de noticiários apocalípticos e de um filme chatíssimo. Preparamos uma maionese tão lentamente que só comeremos à noite. Fritamos batatas. Comemos a carne ainda sangrando, como convém a sobreviventes de um filme-catástrofe.

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15h. Jogamo-nos no sofá para continuar a maratona de uma série na Netflix, “Os assassinos de Valhalla”. Impossível não se deprimir diante das paisagens ermas da Islândia, diferentes desse domingo juiz-forano somente em organização e graus Celsius. A Globo, através da Globo Play, tem sugerido aos demais serviços de streaming diminuir a qualidade das transmissões, devido ao aumento absurdo de utilização da banda de internet. Espero que não.

17h. Minha filha adolescente, entrincheirada em seu quarto, deixa a casamata e prepara para si um macarrão-de-guerra. Decido ajudá-la e queimo a mão com banha de porco. Adolescentes são os que melhor se sairão nesse período de isolamento, pois estão perfeitamente adaptadas a um modo de relacionamento social majoritariamente virtual. Triste consolo.

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19h30. Minha irmã interrompe a maratona no fim do sexto episódio de “Valhalla” ao convocar uma videoconferência com meus pais, isolados em um sítio nas cercanias de Ubá com alguns tios. Brincamos, brindamos, nos aconselhamos mutuamente, na certeza de que brevemente estaremos reunidos em torno de uma mesa e não de uma tela luminosa. Amanhã nos falamos, beijos, beijos.

20h. Aproveito a brecha para fazer um belo prato daquela maionese, que janto acompanhado de cerveja. A Sra. Guiducci já comeu, estamos um pouco descompassados em nosso ritmo alimentar nesse fim de domingo. O mesmo não se pode dizer de nossa sincronia fílmica. Abro outra cerveja para finalizarmos os episódios restantes: fala-se muito de pulmão, mas o fígado é um órgão – e também uma glândula – que merece toda nossa atenção nesses dias de exílio domiciliar.

23h. Finda a série islandesa, minha mente se volta para o amanhã (no caso, ontem). Durante a semana, o impacto na minha rotina é pequeno: trabalho de casa, trabalho da redação do jornal, tranquilamente instalado em ambos os ambientes. Minha vai bem. Repasso os tópicos no grupo de WhatsApp, onde reiteramos a importância de uma das pautas primordiais para a semana: como anda sob as marquises a vida de quem não tem “Serafim Ponte Grande”, pão de queijo, ginástica, carne de boi, vinho, Netflix, maionese, cerveja, videoconferência e a grande e confortável cama na qual me atiro ao fim desse domingo, como faço ao fim de qualquer dia?

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