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Sabem de nada esses homens

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Ilustração: Azevedo Prépe/Reprodução

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Na mesa da birosca tilintam copos e pratos e garrafas e talheres. Fumega ao centro um panelão de maniçoba, e no horizonte a coluna preta que leva a alma de mil sapos. Os homens ignoram o vapor da maniva cozida e correm seus olhos em brasa para as cinzas que sobem da selva, nublando o horizonte acima do Tapajós. E conjecturam. Esse fogo aí na floresta.
Não sabem nada de nada, esses homens aposentados do serviço público militar policial, rodoviário, federal, exército, marinha, esses homens longe longe e saudosos do concreto e do vidro das cidades em que viviam antes de virem parar nesse fim de mundo, concursados, orgulho da família, agora sem força nem coragem para voltar, invejosos dos braços jovens lambidos pelo fogo que combatem lá no meio do mato.
Uma dose de cachaça de jambu.
Um naco de tucunaré.
Um copo de Cerpa Tijuca.
E conjecturam. Esse fogo aí na floresta.
Sabem um pouco do Código Penal, outro pouco do Código de Trânsito, mas a selva, não sabem. Não sabem que a castanheira brotou dos olhos de uma onça grávida, plantados em um sítio mágico pelas mãos de Icuamã. Nem que o primeiro guaraná nasceu do olho direito de um filho morto.
O que sabem esses homens que arrotam e suam e crescem barriga na birosca? Sabem que no início de tudo não havia noite? Sabem que ela estava bem guardada dentro de um coco de tucumã? Sabem nada. Muito menos que as estrelas no céu são os olhos de amaldiçoados meninos ladrões, que para lá fugiram depois de decepar a língua da avó, agora condenados a ver suas mães transformadas em feras.
Geografia, dizem que sabem, GPS, mapa rodoviário, satélite. Mas não sabem que o leito do Rio Andirá foi traçado pelo Sucuri-Ténon no começo dos tempos, quando a Primeira Água jorrou da barriga de seu filho envenenado, Sucuri-Pacu: até então todos os peixes andavam pelo mato igual gente.
Esses homens, bons de caça, que não distinguem bravura de calibre, sabem da onça-pintada nunca comer toda sua presa? Que o bichão, por questão de honra e eterna dívida, deixa sempre uma parte para o gavião-real, que no passado lhe restaurou os olhos, devorados pelo pai da traíra, com leite de jataí?
Dos povos, o que sabem? Só acham. Ignoram que foi uma estrela feita homem que ensinou a nação carajá a fazer roça de milho e mandioca. E que o primeiro maué nasceu da mesma sepultura que o cachorro-do-mato, o macaco-coatá e o porco-queixada, todos gerados dos restos do filho de Onhiamuaçabê.
Mas conjecturam. Esse fogo aí na floresta.
Sabem lá que o fogo foi entregue a toda a gente por um homem luminoso pescado no rio por mariscadores? Que sua cabeça e suas costas flamejavam sobre a flor da água, e que de sua boca de hálito frio saía luz que clareava a ilha toda? Sabem que a pedra wato, essa que solta faísca se relada uma na outra, foi crestada na terra pelas chamas arrancadas à força da barriga da feiticeira Pelénosamó?
Sabem nada de rio nem de estrela, de gente nem de bicho, mas na língua veneno mais forte que de sapo-ponta-de-flecha. E conjecturam. E falam alto. Esse fogo aí na floresta. Será que não foram esses brigadistas que tocaram fogo aí?

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