Faz bem ao ego do ser humano sentir-se na vanguarda do que quer que seja. Hoje, quando falamos por videochamada com amigos que estão a dez mil quilômetros de distância, ou quando fazemos transações bancárias sem tocar em dinheiro, talvez possamos nos sentir muitíssimo evoluídos. Olhamos assim com desdém para quatro décadas atrás, quando um telefonema de um orelhão ou um telegrama cujos caracteres eram contabilizados em centavos eram as mais ágeis formas comunicação. Há ainda menos tempo compunham o arcabouço financeiro expedientes como a nota promissória e o cheque pré-datado. Como homo antiquus que sou, “bota pra 30, 60 e 90, faz favor” foi coisa não rara em meu histórico econômico.
Os Jetsons continuam um sonho distante, em que pesem as bravatas de Elon Musk, e Marte segue longe de ser colonizada pelo homem – para sorte do Planeta Vermelho. Ainda assim nos deslumbramos com cirurgias assistidas por robôs, conduzidas por médicos que estão em continente diverso daquele do paciente, ou com um programa de computador (muito usado por picaretas da palavra) que emula a voz de Scarlett Johansson. Mas é só um apagão no Windows obrigar funcionários de aeroportos a emitir cartões de embarque na base da caneta Bic – espanta mais é que ainda saibam escrever de próprio punho – que rapidamente somos confrontados com a realidade de que nosso DNA, após 200 mil anos de progresso, ainda é 99,7% idêntico ao dos neandertais.
Não se sinta ofendido, evoluído leitor. Nossos irmãos neanderthalensis, extintos há uns 30 mil anos, eram camaradas peludos e bacanas. Permita-me, todavia, usar exemplo talvez mais útil no meu intuito de baixar nossa bolinha. É ponto pacífico que o telefone esperto, vulgo celular, verdadeira prótese a nos conectar com a virtual nuvem informacional, hoje concentra boa parte de nossa vida: ali está o banco, ali está a estação de trabalho, ali estão os canais de comunicação, ali estão dados sensíveis e fotos de gente nua. Facilita demais a vida. Mas vai ficar sem ele: instala-se o terror nos corações hiperconectados. De repente o cidadão chora pela ausência de um orelhão da Telemig no Calçadão da Rua Halfeld. Lamenta ter destruída sua capacidade de memorização e não ter sequer como pedir a alguém para ligar para a própria mãe, pois não recorda o número.
Caçoamos do homem que fomos há duas décadas, mas pifa o wi-fi e somos obrigados a contemplar nossa própria limitação, senão nossa involução, sob vários aspectos. Ao fim do dia, vemos que não somos tão diferentes daquele funcionário da repartição que chegava em casa, assistia ao Jornal Nacional, à novela, dava corda no relógio de pulso e ia dormir para recomeçar tudo de novo na manhã seguinte. Tão modernos e apavorados com a possibilidade de sermos reduzidos a essa caricatura de personagem de Nelson Rodrigues – ou de Machado de Assis, se querem limar a TV e voltar ao século XIX -, tomamos todos os cuidados com nossas próteses tecnológicas. Não só pelo que custam de exorbitante valor, mas pelo que nos custa sua ausência no dia a dia. Estão sempre seguras, protegidas por capinhas e películas e com a bateria bem carregada. E, prevenidos, cuidamos de botá-las para carregar todas as noites, exatamente como aquele bom funcionário de repartição a dar corda em seu relógio de pulso.