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Não são apenas fitas K7

fitas k7
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Lili arrumava as caixas de mudança andando de um lado para o outro, abrindo e fechando gavetas. A fina poeira revolvida por aquele alvoroço privado se dava a ver nos fachos pálidos de sol que gretavam pelas persianas. Acabara de comprar seu primeiro apartamento, bem menor que aquele em que vivia de aluguel, mas que era seu.
Em uma poltrona na sala, seu pai, um velho de barba rala e cabelos um pouco desgrenhados, óculos na ponta do nariz, analisava o inventário de coisas que levaria para sua própria casa, já que não caberiam no novo lar de Lili. Eram livros juvenis, peças de decoração, o violão que Lili nunca aprendera a tocar, CDs, fitas K7.
– E estas fitas aqui, filha?
– Que fitas?
– Estas aqui.
Lili, agachada de frente para o armário da sala, ergueu os olhos por sobre a montanha de agendas velhas empilhadas em uma mesa de centro, afastando a franja dos olhos.
– Ah, são as fitas que o Ângelo gravou pra mim.
– Ângelo?
– É, pai, o Ângelo, que era nosso vizinho? Sabe, que ia lá em casa jogar ludo comigo?
– Ah, sim, sim… aquele do bigodinho.
– Penugem, você quer dizer.
O pai riu, mas não sentiu maldade na observação da filha. Eram pouco mais que duas crianças naquela época.
– E que fim levou o Ângelo, você ainda tem contato com ele?
Lili continuava remexendo nas catacumbas insondáveis do armário. Fios de telefone, modens inativos, carregadores de celulares defuntos.
– Tenho não, nem sei onde ele tá hoje em dia. A gente perdeu contato depois do ensino médio, né? Ele foi fazer faculdade no Sul de Minas, eu acho. Ou Ouro Preto, sei lá.
O pai analisava cada fita, cuidadosamente identificada, com os nomes das músicas escritas em uma caligrafia que faria inveja a um monge chinês.
– Ele caprichava, né?
– Caprichava? Não sei, acho que sim. Acho que ele gostava de fazer essas coletâneas, tinha um daqueles duplo deck em casa. Você viu o cabo HDMI em algum lugar? Não tô achando aqui embaixo. Posso jurar que tinha botado aqui quando tirei a televisão.
– Deve estar caído atrás do armário. Você não quer ficar com essas fitas não?
Lili não estava entendendo a insistência do pai com relação àquela velharia. Estavam guardadas há anos dentro de uma caixa de sapato, estocadas junto com outras quinquilharias no quartinho da bagunça, provavelmente mofadas. Além do mais, todas aquelas músicas já estavam on-line, era só acessar a internet e pronto.
– Eu nem tenho onde ouvir isso, pai. Se quiser pode jogar fora, não precisa levar pra sua casa não.
O pai voltou os olhos desgastados para os cassetes, que manuseava com toda delicadeza.
– Lili, você sabe que isso aqui não são só fitas, né? Isso aqui no meu colo é uma caixa de sapatos cheia de declarações de amor. Cada fita. Cada música.
Por alguns instantes, a inquietação de Lili com a mudança abrandou. Entre as mechas da longa franja castanha, seus olhos encontraram os do pai e algo dentro dela se iluminou. Pensou em si mesma, no cuidado que tinha ao montar uma playlist quando oferecia aos amigos uma festa naquele apartamento que já não era mais o seu. O quanto queria, com aquelas canções escolhidas, deixar seus convidados felizes, ainda que ela mesma pudesse não gostar tanto de uma ou de outra. Em cada música, sim, um gesto de amor.
Tudo isso passou pela mente de Lili em questão de segundos. Sem saber ao certo aonde a mente da filha havia ido, o pai cuidou de tirá-la do breve transe.
– Você não precisa guardar as fitas, filha. Nem eu preciso, na verdade. Só acho bom que você saiba o que elas são.
O velho pôs-se de pé.
– Agora… vamos achar esse cabo HDMI?
Pela janela entrou então um rugido pouco musical. Lá embaixo, na porta do prédio, um caminhão rosnava ao largo do meio-fio, pronto para levar embora as muitas caixas de Lili.

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