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Tiradentes esquartejado

capa Tiradentes esquartejado
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Impossibilitado de tomar uma no Mondial de La Bière, uma vez que motorizado, e desanimado de encarar a fila quilométrica que jararacava desde a boca do Museu do Amanhã, decidi dar uma banda pelo Museu de Arte do Rio, que anda se ressentindo da badalação em cima de seu irmão mais novo e bem acabado.

E qual não foi minha surpresa, após percorrer a pouco feliz mostra “Leopoldina, princesa da independência, das artes e das ciências”, ao me deparar com um velho amigo. “Tiradentes esquartejado”, obra mais tenebrosa de Pedro Américo e uma das mais “gore” das artes plásticas brasileiras, imponente lá do alto de seus quase três metros de sangue e mutilação.

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Parei pra ver, estava com saudades.

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Não via o amigo desde, sei lá, quando o Museu Mariano Procópio estava aberto – digo, realmente aberto -, ou seja, tempo pra danar.

Fiquei ali uns minutos apreciando a carne furada, o corpo desmembrado, o capricho do sagaz Pedro Américo na representação do tecido ensanguentado e tudo mais, quando um grupo de estudantes – segunda metade do fundamental dois, deduzi pelas mechas rosas e as panelinhas bem definidas – chegou balburdiando de levinho no cabresto da professora.

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– Tiradentes esquartejado, Pedro Américo, 1893, pintado por iniciativa do artista por ocasião do centenário de morte do Mártir da Independência -, disse a dona.

A meninada pira no Joaquim José esquartejado, que ali pelos 12 a gente se amarra num filme de horror.

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– Quem ele lembra, gente? -, perguntava a tia.

– Jesus, professora.

– Muito bem, Jesus, porque Pedro Américo queria reforçar a imagem de Tiradentes como um mártir da Conjuração Mineira – lembram da Conjuração Mineira? -, então aproximou sua fisionomia de outro mártir muito conhecido, que era Cristo. Mas ninguém sabe sequer se Tiradentes era branco ou mulato.

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E eu ali de butuca, aprendendo.

– O crucifixo perto da cabeça reforça essa relação cívico-religiosa. Agora observem como o ângulo da perna com o braço caído, o tronco e aquele pé ali atrás formam o contorno do mapa do Brasil.

– Ooooohhhhh…

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A molecada pira muito no Tiradentes esquartejado.

E é legal ver as professoras levando a patota para aprender no museu, é um troço muito lindo. E ela provocando a trupe.

– O que mais vocês percebem?

E aí, claro, sempre aparece um Joãozinho.

– Uma tatuagem. Ele tinha uma tatuagem.

– Tatuagem, Fulano? Onde você está vendo tatuagem? -, e a molecada toda chega mais perto, me atropelando. E eu espremendo o zoinho. Tatuagem? Como que eu nunca percebi antes?

– A tatuagem que um amigo índio dele, tapirapé, fez. Está no braço dele.

– Mas onde…

– No braço que não está aí, porque foi roubado por um cachorro na hora que caiu no chão depois da machadada do executor e ninguém quis correr atrás pra pegar.

– Fulano!…, ralhou a tia. Nós estamos falando de coisa séria aqui!

E a meninada caiu na gargalhada. O Fulaninho acrescentou um molho à história do mártir da Independência que não sei se vai desgrudar da mente dos colegas.

E eu, com meus botões, saboreando uma faísca que iluminava uma esperança: a de que ainda haja espaço para a fantasia nessas cabecinhas educadas para a objetividade, “a coisa séria” e a competição.

– Agora vamos para a parte final, todos juntos, vamos – e seguiram a professora e seus aprendizes pelos corredores do Museu de Arte do Rio, o Fulaninho cheio de imaginação entre eles.

E eu sobrei, pensando no cachorro saindo batido pro mato com o braço tatuado do Tiradentes na boca.

Obra de Pedro Américo pertence ao acervo do Museu Mariano Procópio
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