“As melhores coisas da vida são as que nós fazemos sem receber dinheiro”, me confidencia o dono do boteco, um pouco filosófico nessa noite de quinta, enquanto me serve uma Bohemia. Vejo em seu rosto-mãos a vontade de estar falando isso a outra pessoa, em outro lugar, vestido com outras roupas que não o avental sujo de moelinha e fígado de boi que desfila por entre as mesas de lata.
Talvez pescando em Três Marias. Jogando botão com os sobrinhos. Fazendo crochê. Não sei.
E nem é que odeie estar ali. Ri, brinca com os clientes, enfeza-se com os gols que o Botafogo seguidamente perde, capricha na montagem dos tira-gostos, elogia a si mesmo quando refere-se a alguns deles, “criação minha”, “temperinho meu”, esmero e vaidade. O dono do boteco certamente gosta do que faz. E faz bem. Mas, diante da imperiosidade do ter de fazer, talvez não seja o que faça melhor.
É o sargento que seria melhor goleiro, o esgrimista que seria melhor piloto de caça. A dona de casa que seria melhor pintora, a designer que seria melhor cozinheira, o bancário que seria melhor guitarrista, o cantor de baile que seria melhor pedreiro. A jornalista que seria melhor atriz. O juiz que seria melhor repórter. A mãe que seria melhor tia e o tio que seria melhor pai.
Melhor no sentido restrito do ato de fazer, com prazer, verdade e liberdade.
O fazer pela sobrevivência, pelo pão de cada dia ganha espírito de necessidade, mas não a necessidade que o poeta tem de escrever, que o amante tem de dizer eu te amo, pois de outra forma murcham e morrem. É uma necessidade de outra ordem, prática, objetiva, funcional. Esse modo de realização, que por certo pare tantas coisas boas no mundo, como a moelinha do boteco, é cercado da aura da obrigação, de um tipo de escravidão consentida que a (quase) todos, mais cedo ou mais tarde, subjuga.
“Alimentar uma prensa à espera de poemas pode facilmente transformar-se em jornalismo”, escreveu certa feita um alemão desterrado de nome Charles Bukowski, separando a fio de navalha o prazer de produzir da necessidade de produzir. Não há liberdade no mundo do trabalho, senão a de ir para casa, dormir, consumir o absolutamente necessário para manter-se vivo, voltar ao posto e produzir mais.
Assim, consensualmente escravizados, nem o sargento pode abandonar sua farda, o bancário seu caixa, a jornalista a redação, o juiz o tribunal, o dono do boteco seu avental, que aponta luminoso-maculado da esquina do balcão quando me traz uma travessa de maçã de peito com batatas.
Criação dele.