Conversava outro dia com minha vizinha de coluna Júlia Pessôa sobre como gosto dos textos dela. Tenho a sorte de ser o primeiro a lê-los, revisando-os para publicação na Tribuna a cada domingo. Comentava com ela minha preferência pela crônica propriamente dita e como nossos textos – os dela e os meus também – às vezes fugiam de nosso cabresto e derivavam para o puro artigo de opinião, ainda que reservada alguma fineza de tratamento ao vernáculo.
O melhor da crônica é justamente o fato de ser impura, degenerada, no sentido de não fixar-se a um único gênero, quando flerta com a ficção e com o poema, com o ensaio e com a canção, com a carta, com o diário. Defini-la é, inclusive, um dos grandes problemas não resolvidos dos teóricos da literatura e do jornalismo, pois paira aí entre esses dois mundos, sem aterrissar definitivamente em um ou outro.
De minha parte, prefiro partir sempre do rés-do-chão, do mais banal e cotidiano, para conduzir o leitor num passeio por aí na mais deslavada conversa fiada. Tento evitar o artigo de opinião a todo custo, pois a opinião, geralmente não requisitada, está por todos os cantos, em todas as mídias, afogando-nos nesses tempos da horrenda “pós-verdade”. Pra mim, nada será mais anotável que o não notável: a conversa ouvida na fila do supermercado, o cachorro caramelo no Parque Halfeld, o pintor de estacas na BR-040.
Mas, caríssimo leitor, o brasil, esse brasil com b minúsculo, como escreveu Emicida, não deixa.
O brasil com b minúsculo, quando sento ao computador para escrever, silencia o supermercado, espanta o cachorro caramelo, atropela o pintor de estacas, e isso é o menos pior. O brasil com b minúsculo grita contra a interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, estuprada desde os 6. Revela seu nome. Expõe sua família. Faz escândalo na porta do hospital.
O brasil com b minúsculo grita contra a interrupção da gravidez, mas não contra a interrupção da infância aos 6 anos de idade.
Não há morte mais horrível.
Dessas coisas, tem dias que o cronista não consegue escapar.