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Poderosas do Krismara

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Era uma tarde destas raras na vida, em que o cidadão tem como único e exclusivo dever ser pai, nada mais, nada menos. Enquanto minha filha se exercitava em trapézios e tecidos na escola de circo – temos vocação e incentivamos palhaçarias variadas lá em casa -, resolvi descolar um boteco padrão para acompanhar Alemanha x França. O leitor terá a benevolência de acreditar: tirar férias durante a Eurocopa é um luxo, ainda que seja para ver pela TV. Campeando pelas ruas do Ducado de São Mateus, desemboquei nas portas e braços abertos do Krismara, trincheira das baixas paixões, panelão onde fervem os vícios e hormônios juvenis de Juiz de Fora e alhures.

Num balanço Pogba, determinado e agudo, cruzei o salão vazio e abundei-me no lugar mais nobre: o balcão, de frente para o televisor e rente à estufa onde reluzia uma dúzia de coxinhas recém-fritas. Solicitei ao Antônio: – Uma Brahma, faz favor. Já iam 13 minutos do primeiro tempo quando percebi uma mesa à minha esquerda traseira – digamos 8 horas, marujo -, a única ocupada em todo o bar, cheia de garrafas vazias, onde três moças paramentadas com o uniforme de um grande laboratório de análises clínicas bebiam. Era quinta-feira, dia internacional da secura por uma breja, e suponho que elas decidiram não esperar pela sexta-feira-sua-linda. Fim de expediente, rumaram para o Krismara a fim de aliviar as tensões, comer tira-gostos e quebrar a espinha da rotina. Impiedosamente.

Sem nenhum homem para amolar, falavam aos borbotões, suplantando a voz do locutor do SporTV, o que induziu-me à indiscrição, apesar da razoável perda de audição que os anos de música alta agora me impõem, de pescar uma ou outra matéria do colóquio. Gargalhavam da ranhetice de um cidadão – deduzi fosse o chefe de todas – que não permitia unhas vermelhas pois era “cor de sangue e não convém à área de saúde”. Uma delas comentava do milagre de poder sair na quinta à noite porque o pai do filho pequeno aceitara ficar com ele um dia antes do combinado no acordo de guarda compartilhada. Outra, ao mesmo tempo em que pedia mais uma garrafa de Brahma ao Antônio, falava de uma viagem que estava planejando fazer sozinha a Buenos Aires nas próximas férias.

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A terceira, ex-modelo que reconheci de um freela que eu fizera para uma extinta revista local há alguns anos, de quando em vez cutucava as demais e apontava para a televisão, se o locutor se empolgava com um ou outro lance de perigo. E era apenas isso, interesse fortuito por eventual jogada mais plástica. Não era “ai, meu deus, olha esse barbudo” ou “que pernas”. Eu, por meu turno, tirava o boné para Antoine Griezmann, autor de dois gols que levaram a França à final da Euro naquela tarde. “Como joga esse magrelo”, comentei com o Antônio enquanto ele depositava na estufa uma bandeja de quibes fumegantes da Assunção. Que, obviamente, não recusei.

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Antes de o jogo chegar ao fim, passei a régua e fui dar conta de meu dever paterno. As moças, combinando um encontro entre si para logo mais, com direito a concentração na casa de uma delas – aparentemente iriam a uma conhecida casa onde se apresentam duplas sertanejas na região do Aeroporto –, pediram a conta quase que simultaneamente a mim. Paguei as duas Brahmas, o quibe e alcancei a Rua Morais e Castro rumo à escola de circo, tentando lembrar se o trio, cuja espontaneidade naquela tarde ordinária de quinta-feira era realmente notável, havia dito algo sobre patriarcado ou opressão de gênero. Se elas falaram, não ouvi. Se conheciam o termo sufragista ou leram Simone de Beauvoir, desconheço. Mas em termos de empoderamento, ó, estão indo bem demais. O cara das unhas cor de sangue que se cuide.

 

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