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Entregar, verbo da moda

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Há, como sabemos, palavras da moda. Poderíamos citar aqui algumas que desfilaram recentemente, como “gratidão”, “gatilho”, “desconstruir”, “ressignificar”. Caberiam mais. Porém hoje dedicaremos estas mal-traçadas a outro vocábulo que nos tem rodeado, frequentemente tirado de seu uso preciso, assombrando-nos diuturnamente. Trata-se do verbo “entregar” e sua forma substantiva, “entrega”.
Sei, caro leitor, que um tuíte – como aquele que, aliás, já tuitei – bastaria para defenestrar o referido verbete em sua corrente porca acepção, mas é preciso preencher aqui ao menos umas 300 palavras, de modos que Dudu, o diagramador, não me venha no WhatsApp com um “noooossa, você escreveu só issssooo??” seguido de uma figurinha parecida com Marceline, de “Hora da aventura”, esfregando um ferro de passar roupa na barriga. A legenda: “passada”.
Sou escravo do papel, Dudu é meu capataz.
Não sei se no entorno de vocês a palavra “entrega” vem sendo utilizada fora de sua aplicação mais precisa, que é a dos motoboys, dos carteiros, dos motoristas de caminhão, dos aplicativos de comida e do mercadinho da esquina. Essa é a gente, de valorosa labuta, que faz entrega. Mas agora o povo desandou a usar “entrega” pra tudo que tem a ver com desempenho.
Ouvi outro dia na televisão um rapaz dizer que o atacante Gilberto, do Bahia, era importante para o time porque “entregava muitos gols”. Ora, jovem, por favor: em futebol todo mundo sabe que quem “entrega a rapadura” é goleiro, zagueiro, volante. Negócio de atacante é fuzilar o arqueiro, sacudir o barbante, balançar as redes. A língua é viva mas não merece sangrar assim.
Minha memória mais antiga do atual desvirtuamento da “entrega” tem raízes aqui na redação desta Tribuna. Um profissional da área de vendas – logo, vítima de contágio, pois geralmente essas marmotas da linguagem surgem no seio do marketing e da publicidade – que dizia “precisamos melhorar nossa entrega”, “não estamos entregando o que prometemos” etc. De lá pra cá a coisa se avolumou, saiu de controle, invadiu o jornalismo, o tarô, a psicologia, o jogo do bicho, a educação e dentro em pouco ouviremos crianças dizendo “não, mãe, eu juro que vou entregar notas melhores no próximo boletim” e amantes retrucando “vou-me embora pois você não entrega a paixão que mereço”.
Foi Ferreira Gullar que certa feita imaginou um gatilho (esse gatilho pode, tá?) na garganta do cidadão. E esse gatilho dispararia toda vez que o indivíduo pronunciasse “eu te amo” mentindo. Bum!, sua cabeça iria pelos ares. Cheguei a considerar uma boa alternativa para o uso inconveniente de “entrega”. Todavia, assim como o grande poeta abandonou a ideia, quem sou eu para me fiar a algum radicalismo. Até porque teria de me juntar a Dona Sônia e ajudar a catar muitos miolos no carpete daqui.

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