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Que tudo se realize (e uma receita de miojo – parte I)

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Certas perguntas te acompanham pela vida inteira. Para algumas, você nunca acha a resposta. Para outras, você acha várias, mas as questões ignoram suas soluções e continuam a te perseguir assim mesmo. Eu, por exemplo, não consigo entender o que há de tão errado no Ano Novo. Nunca gostei desta data. Já passei a virada do ano em lugares simples, em lugares isolados, em lugares sofisticados, em lugares abertos, em lugares fechados, em lugares comuns, dentro d’água, na cama, bêbado, sóbrio, faminto, entupido de comida da boa e da melhor, com gente que eu amo, com gente que eu não gosto, com gente que eu nunca vi na vida e nunca vou ver de novo, com gente que eu vejo toda hora… nada disso alivia a angústia que, como numa parábola, aumenta de forma geometricamente perfeita até atingir o ápice à zero hora do dia primeiro de janeiro e depois desce lentamente até se dissipar no decorrer do Dia Mundial da Paz.

É um pensamento que me assalta de tempos em tempos, em horas improváveis de solidão ou enquanto jogo conversa fora com uma pessoa qualquer. Agora, por exemplo, ele me veio à cabeça à uma e pouco da manhã, numa madrugada absurdamente quente de verão, na cozinha do meu apartamento, enquanto preparo um miojo classe A. Eu sou um especialista em miojo, sabe? Fui obrigado a comer esta fabulosa invenção da humanidade por absoluta falta de opção por muitos anos, o que me levou a criar soluções simples e saborosas para fugir da mesmice. Não sou um chef gourmet nem nada do tipo, mas comer miojo de galinha caipira na segunda, de carne na terça, de bacon na quarta, de pizza na quinta e de queijo na sexta te motiva bastante. Os sabores disponíveis no mercado não são suficientes para impedir que você tome pavor do macarrão instantâneo, portanto, eu fui adicionando ingredientes extras para diversificar o paladar e transformar o miojo em uma iguaria estudantil. Agora, por exemplo, preparo um que vai levar requeijão, queijo mozarela e salaminho, que é o que está à mão.

Mas, voltando ao ano novo, não é que eu não tenha encontrado respostas para esse meu desgosto com a data. Eu achei várias, se quer saber, e provavelmente estão todas certas e se complementam. A questão que me incomoda talvez seja outra, talvez seja por que diabos eu fico pensando nisso de quando em vez, ao invés de simplesmente deixar pra lá, mesmo no dia 31 de dezembro, enxergar como um dia comum e pronto, encarar como um enterro ou qualquer coisa assim, mas simplesmente passar por cima, chegar na manhã seguinte vivo e sem me deprimir. Por que isso tem que me incomodar ainda, se eu já entendi os vários fatores que me deixam de saco cheio e constatei sua inexorabilidade? Eu já entendi, por exemplo e talvez principalmente, que a expectativa vazia e sem sentido criada por um inconsciente coletivo ditatorial, e minha compreensão desta ameaça que beira o terrorismo psicológico, fazem com que eu me sinta um alienígena por não compartilhar deste sentimento de esperança e renovação que parece tão óbvio em todo mundo. Pelo amor de deus, é apenas mais uma noite, é mais uma festa! Só que é como uma festa no hospital, com todo mundo vestido de branco. E, como no hospital, os quartos do mundo estão cheios de doentes e moribundos. Foguetes e fogos de artifício não vão salvá-los.

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(Continua na próxima semana.)

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Ilustração: Ingryd Lamas
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