Está em cartaz no Museu de Arte Murilo Mendes a exposição “Olho a(r)mado”, de Guilherme Melich. Todos têm tecido elogios ao trabalho de Guina, como é conhecido o jovem artista nos círculos puídos do rock juiz-forano, nos quais milita com o mesmo vigor com que ataca as telas. Todos, menos o vigia da noite, que toma o ônibus 538 (Morada do Serro/Adolpho Vireque via Jardim Casablanca) religiosamente às sete e trinta e dois da manhã, dia sim, dia não, no ponto da antiga Reitoria.
– Os quadros falam -, confidencia ao trocador sonolento que assumiu no turno das seis.
No salão da Galeria Retratos-Relâmpago, quando apagam-se as luzes do edifício sessentista projetado por Décio Bracher, emerge da penumbra o zum-zum-zum. Palavras ditas em húngaro. Em italiano. Português lisboeta. Um alvoroço sonoro sussurrado à meia-luz que vem do jardim. A animada conversa começa quando a Rua Benjamin Constant quase silencia na madrugada profunda e termina quando o primeiro sopro solar ameaça dourar o topo dos prédios e as portas ensebadas dos botequins prestes a abrir.
Só o vigia ouve.
– Eles falam em várias línguas.
E vê.
Murilo Mendes com Adalgisa Nery, esticando o pescoço para fora da tela empastada, as camadas e camadas de tinta desgrudando enquanto o poeta se vira para procurar Arpad Szenes, sua cabeça grande e branca, e prosear sobre o Rio de Janeiro da década de 1940. O montanhês Guinard, testa franzida, semblante sorumbático, ergue a face em busca de Portinari e Ismael Nery. Presas aos painéis, as figuras movimentam-se dentro das molduras, falam, discutem, tossem, pigarreiam, riem, discordam, elevam o tom, uma algazarra de tons terrosos pontuados por discretos e precisos amarelos.
O vigia vê e ouve tudo isso e já não quer trabalhar no Mamm. Pelo menos até essa gente toda ir embora em setembro, pro diabo que lhes carregue. Ele que não ficará lá nem mais uma madrugada. Na segunda-feira pedirá transferência para outro edifício da Universidade Federal de Juiz de Fora. O Centro de Ciências. A Biblioteca Central. O Laboratório de Anatomia e seus cadáveres, que seja! Lá pelo menos os mortos ficam quietos e não se atrevem à vida desses quadros insones.