Quando eu deixei a redação da Tribuna na última sexta-feira, o clima era de consternação. Havíamos noticiado há pouco, como todos os veículos de imprensa do país, a morte da cantora Marília Mendonça. Passei no supermercado e não havia outro assunto entre clientes e funcionários. Peguei minha filha, 15 anos, na casa da avó e seu rosto estava vermelho, molhado de lágrimas. Tentei confortá-la, mas não encontrei palavras. Nunca as encontro nesses assuntos da morte. Procuro e, quando elas aparecem, logo se adelgaçam, tornam-se fantasmagóricas, sem corpo e somem sem que eu consiga dar-lhes utilidade.
Desligo o rádio e restam o som do motor e os soluços da minha filha no banco traseiro, eco frágil da dor de milhões de fãs. Dirijo para casa pensando nas dimensões de Marília Mendonça. Cantora, compositora, estrela pop em seu ápice, o zênite de uma linhagem de mulheres que se atreveram a meter-se onde não eram chamadas, desde Inezita Barroso, Dona Helena Meirelles, Célia e Celma, Roberta Miranda até as divas do feminejo. E há outras dimensões de Marília: jovem empreendedora, mãe de um menininho, filha de sua maior fã. Olho pelo retrovisor na penumbra entrecortada pela luz dos postes e meu coração é aterrorizado pela ideia da morte de gente moça.
Chego em casa trocando mensagens com uma colega de jornal, ligo o computador, abro uma cerveja, ainda há trabalho a ser feito. Continuo pensando nas facetas de Marília Mendonça e uma em particular me aproxima mais daquela “patroa” que eu não conhecia. Apesar do sucesso absurdo que seguia crescendo – tinha turnê agendada com Maiara & Maraísa para Europa e Estados Unidos no ano que vem, foi gravada por Gal Costa, homenageada em música de Caetano – e da aura super-humana própria dos olimpianos, uma de suas dimensões a igualava a uma categoria muito particular e paradoxalmente ordinária, pois tão populosa: Marília era uma trabalhadora da música.
O que se vê num palco, caro leitor, é fruto do trabalho de muita gente. De quem compõe, de quem canta, de quem grava, do produtor que apara todas as arestas, do técnico que cuida para que o som esteja limpo, do iluminador que cria o clima, de quem carrega, monta e desmonta o equipamento, de quem liga os cabos, monta os pedestais, afina os instrumentos. No caso de grandes estrelas como Marília Mendonça, há ainda o trabalho dos músicos estacionados fora dos holofotes, de quem arranja o camarim, de quem cuida da maquiagem, do figurino, da segurança, da comida, de quem dirige o ônibus, de quem pilota o avião.
Marília Mendonça pertencia, obviamente, ao Olimpo das grandes estrelas. Mas fazia parte também desta outra comunidade, tão terrena, a mesma de seu tio, a mesma de seu produtor, ambos mortos na tragédia de sexta, a mesma dos músicos e técnicos que a aguardavam em Caratinga para um show que nunca será. Uma comunidade cuja maioria esmagadora dos integrantes é invisível. A imagem da moça carregando seu próprio violão, conjuntinho xadrez rumo ao avião condenado, é a imagem dessa dimensão humana, exuberantemente humana, da super-humana Marília Mendonça.