Eu acordei um pouco ressaqueado naquele domingo, confesso. Passara horas conversando com amigos de infância, bebendo cerveja e vendo bandas de rock locais se revezando no palco montado na Praça Guido Marliére. Atrás da estrutura, assombrava a fachada do que fora o Cine Marajó. Ali, assisti ao meu primeiro filme de terror no cinema, “A volta dos mortos-vivos”. No lado oposto da praça, pairava o espírito de outra sala, o Cine Brasil, ora transformado em igreja neopentecostal. Ali, tempos remotos, teci louvores ao Superman de Christopher Reeve, glorifiquei o vampirão de “A hora do espanto” e santifiquei a heroína de “Aliens”. Ave Maria.
Foi aninhado nessas lembranças recém-despertas que me coloquei de pé, atravessei o pasto e me dirigi à cozinha. O café fumegava, e o falatório das tias rivalizava com os decibéis distorcidos da noite pretérita: também música para os meus ouvidos. Tomei meu desjejum com minha mãe, minha irmã, as tias animadas e, bucho cheio, subi uma escadinha que vai dar na área da piscina e no pé de jambo. Escolhi uma cadeira de plástico, dessas que abraçam a gente, sentei e fiquei olhando a paisagem. Nem os dias sem chuva intimidavam a exuberância algo ressequida das mangueiras que margeiam a estrada ao largo da pastagem igualmente desidratada.
Não tardou e chegou aos meus ouvidos, por sobre o zunido residual das guitarras dormidas e da algazarra das tias, o grasnar de um tucano. Não importa quão comuns sejam essas aves hoje em dia, sempre têm minha atenção. Uma atenção apressada, fugidia, aflita, mas ainda assim atenção. Mas não naquela manhã. Naquela manhã seca não havia celular ligado, computador, hora pra almoçar, hora pra entrar, hora pra sair, não havia hora, cronimétrico leitor. Então, eu posicionei minha poltrona plástica de modo a poder observar com vagar e filosofal profundidade o comportamento do tucano sem ganhar um torcicolo. Sim, ali estava eu, de camarote, o mais à toa dos seres humanos, mirando tucano.
Ele estava pousado no galho de uma mangueira, dando bicadas no tronco. Às vezes parecia que afiava o bico colorido, passando-o de um lado e do outro no galho. Será que aquilo não arranha a lataria lustrosa? Ficou por ali bicando, virando a cabeça em trejeitos caricatos. Não sei se sabia que tinha toda a minha atenção. Não sei se tucano sabe o que é atenção. Em sua bendita ignorância, dado momento, ele voou para um outro galho da mangueira, fora do meu campo de visão. Mas eu ainda o podia ouvir bicando e gorjeando, chalreando, grasnando, sei lá o nome do miado do tucano. Ficou um pouco lá, escondido só que não, até que voou para uma bananeira ao lado.
Bicho danado o tal do tucano, tá? Ele se posicionou em cima de um cacho de bananas ainda verdes e começou a investigar qual mais lhe apetecia. Virou a cabeça pra cá, pra lá, bicou uma banana e saiu voando de volta para a mangueira. Com um pé, segurou a banana, e com o bicão, arrancou alguma coisa e cuspiu fora. Seria a casca? “Não é possível um trem desses”, eu pensei. Fato é que o bicho levantou a banana, imagino sem casca, abriu o bico e deixou a gravidade fazer o resto, deslizando a fruta goela abaixo. Muito engenhoso.
Sei que tucano é bicho sacana. Destrói ninho de outros passarinhos, come ovos, come filhotinhos, come até filhote de sagui, pelo que fiquei sabendo. Mas nada disso passou pela minha cabeça naqueles longos minutos em que fiquei a observar a ave, sem um pingo de pressa, gozando minha própria ignorância. Vai problematizar comportamento de tucano no quinto dos infernos. Ali na manhã árida, à beira do riacho cadavérico, me interessava apenas a negritude de sua asa, o fogo plástico de seu bico, agora à vontade sobre o cacho de banana que, uma a uma, ia devorando com destreza circense.