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Dotados e esforçados

Miles-Davis

Foto: Divulgação

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“Na próxima vida eu quero vir música”, comentava comigo Elaine durante a animada festa junina da qual nos colocamos à parte, encostados em um muro de pedra e bebendo caipirinhas de frutas diversas. “Não viver de música, apenas tocar música. Não quero saber de boleto, de receber salário, mexer com dinheiro, ficar rica, ser pobre. Só tocar.”

Embora toque saxofone e experimente com outros instrumentos de sopro, Elaine não se considera boa musicista, acha que não nasceu com o feeling que alguns têm, essas pessoas que pegam qualquer instrumento e em 5 minutos já estão tirando um som. Ela, como eu, teve de aprender na marra, de forma não natural, como aprendemos a fazer conta, a escrever, ler. Todas essas ciências antinaturais.

“Diferente dessa daí”, apontava com os olhos brilhando para a namorada que dançava ao som de “Pagode em Brasília”, de Tião Carreiro e Pardinho — era mesmo uma festa junina arretada. Para “aquela dali”, música é como comer, beber, fazer sexo. Natural. Eu, sentado aqui para escrever, enfileirando palavras e frases, sofro. Como sofro para compor uma letra, elaborar uma melodia, aprender uma nova receita que vai ao forno, desenhar um homem sentado sozinho em uma mesa de bar.

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Eu, assim com Elaine, faço as coisas antinaturais que faço na teimosia. Faço porque não me basta ouvir a música, cantar a música, comer o prato, ver o desenho. Martelando contra minhas limitações é que faço música, cozinho em casa, desenho nos cantos dos cadernos. Escrevo essa crônica.

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Esses que intuitivamente vão desenvolvendo suas habilidades — jogam bola, esculpem figuras no barro, tecem cachecóis, desmontam rádios, erguem paredes, escrevem poemas, dançam — também evoluem com o exercício, apuram técnicas, aperfeiçoam métodos, às vezes com estudo formal, muitas vezes sem. Mas tornam natural o que para nós, os esforçados, é antinatural. Tornam-se os grandes Miles Davis e Michelangelos, Allan Poes e Hermetos Paschoais, Ziraldos e Graham Bells.

Ou então estão aí, ao lado da gente, sem ambições nenhuma além de tirar prazer do que fazem com talento e naturalidade, anônimos Garrinchas e Hendrixes e Einsteins e Machados na fila do restaurante self-service, pagando conta na lotérica, esperando o ônibus no ponto mais abarrotado da Getúlio Vargas às seis da tarde de uma terça ordinária.

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