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A morte do gambá

a morte do gambá
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Nas manhãs de domingo, cada qual se ocupa do que lhe cabe. Eu, recebendo os pais em casa naquele fim de semana, preparava o café. Duas colheres de pó na prensa, pãozinho de sal no forno, manteiga e queijo sobre a bancada da cozinha, pão de forma, leite _ o bolo, pecado, esquecido lá na loja do São Mateus. Do lado de fora a Sra. Guiducci tratava do quintal, podando planta, cuidando para não queimar a mão com lagarta-de-fogo, taturana endemoniada que sapeca a gente ao mínimo toque.
Findo o desjejum, passei a mão no saco de lixo cheio de folhas secas e caules verdes para levá-lo até a lixeira da rua, arrastando chinelo e respirando o ar puro da manhã pré-carnavalesca. Descendo a calçada, vi meu vizinho de 4 anos apontando o meio da rua. “Tatu”, disse ele. Espremi os olhos na direção que o dedinho indicava e vi. No calçamento de bloco intertravado jazia o “tatu”, um filhote de gambá morto na noite anterior.
Não fosse o filete de sangue no chão e um resquício de entranha exposta, não o diriam falecido. Esmagado por carro ou motocicleta, de certo. Alguém que subia a rua não o viu atravessando na madrugada densa de neblina e passou por cima. Se ia da cerca oposta para a casa do vizinho ou da casa do vizinho para a cerca oposta, jamais saberemos. Cheguei perto e confirmei o óbito às 8h37. Causa da morte: esmagamento por atropelamento veicular.
“É um gambazinho”, disse para meu vizinho mirim. “Não, é tatu”, insistiu ele. Eu emendei, sem pensar muito: “Então ele deve ter perdido a carapaça, coitado”. Voltei em casa, busquei uma pá, recolhi o cadáver do desafortunado marsupial e joguei dentro do saco de mato cortado. Desci a rua até a lixeira e lá deixei o defunto, repousando eternamente sobre o leito de folhagens.
Subindo a rua de volta para casa, meu pequeno amigo permanecia na entrada da garagem. “Eu quero que o tatu fica ali.” Foi quando percebi que ele não havia compreendido que o gambá já era carne para vermes. Que o “tatu” não poderia ficar ali porque logo começaria a apodrecer e outros carros passariam sobre ele e quem sabe viria o carcará lhe comer os restos mortais.
Simplifiquei. “Ele teve que ir embora, mas depois vão aparecer outros. Aqui tem muito tatu. Não preocupa não.” Entre as muitas ocupações possíveis em um domingo de manhã, não estava nos planos explicar ao meu amiguinho a inexorabilidade da morte ou a fragilidade da vida.

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