Antes que eu desligue o motor, o som invade o interior do carro pelas janelas abertas, deslizando no ar quente da noite que principia. É uma música alegre e isso não tem nada a ver com seu andamento, sua escala ou harmonia: a alegria está em duas dezenas de vozes adolescentes que esgoelam sobre uma base pré-gravada, o inconfundível som de karaokê. A música se joga por sobre o parapeito do terceiro andar da escola e flutua até a rua levemente alaranjada pela luz dos postes.
Ao meu lado, a Sra. Guiducci sorri na penumbra. Eu também. O riso, dizem os cientistas, é contagioso. Tem algo a ver com neurônios-espelhos ou coisa assim. Mas eu me arriscaria a dizer que vai além. Diria que uma cantoria como aquela, tão pura em sua espontaneidade juvenil, dissolve qualquer sisudez. Qualquer um que passasse por ali, por mais carrancudo que estivesse, deixaria entrever um sorriso, de canto de boca que fosse, mesmo sem perceber, atingido para além dos neurônios, um espasmo na solidez de sua carne.
Lá em cima, as ex-crianças não adultas ainda revezam-se ao microfone, sempre rodeadas por seus pares. “Los Hermanos? Isso não é do tempo deles”, observa a Sra. Guiducci. Pondero que não se pode subestimar a influência exercida pelo séquito daquele conjunto que se nega, quando raro se reúne, a tocar para os fiéis sua mais famosa peça. A meninada, que nada tem com isso, berra a plenos pulmões seu lamento pela escorraçada Anna Júlia. E vem “Dança da motinha”. E sertanejo. E uma assanhada que interpreta a pouco católica Ana Castela, cuja letra faz os versos de Cazuza, “procurando vaga uma hora aqui, a outra ali, no vaivém dos seus quadris”, parecerem ter saído do hinário de um coroinha.
(Que diabos, pra quê a adolescência sem um pouco de afronta musical?)
“Pro dia nascer feliz”, que foi hit há exatos 40 anos, encerra assim, na voz-solo de um professor devoto, acompanhado de seus arrebatados alunos, a cantarola. Desligado o amplificador, a algazarra se faz em falatório e passos convulsos e risos risos risos. De cá, meu próprio riso, contagiado e involuntário, permanece, algo melancólico. Pois não sabem, essas meninas e meninos que tateiam no umbral entre a infância e a vida adulta, que sob a franqueza de seu canto subjazem os estertores de sua última, sagrada, esplêndida inocência.