Sentei-me na escadaria da Igreja de São Sebastião à espera de aconselhamento. Enquanto aguardava, notava a melancolia dos gradis regulando a circulação no Parque Halfeld, contrastando com o vai-vem incrivelmente frenético das pessoas no entorno da praça, descendo e subindo o Calçadão. Esperava o quê? Uma visão pós-apocalíptica, como Cillian Murphy andando pelas ruas nuas de Londres naquele filme de zumbis cheiradões do Danny Boyle? Acaso não tenho visto as fotografias que Fernando Priamo nos traz à redação da Tribuna todo santo dia, filas nas Lojas Americanas, filas nos pontos de ônibus da Getúlio, filas nas lotéricas… o que eu esperava? Salvação, ali na porta da igreja?
E eis que chega à escadaria do templo meu conselheiro. Ele, o arguto vira-latas de médio porte e pelagem curta e cor-de-mel já descrito em pretéritas mal-traçadas. Não nos víamos já há quase um ano.
– Como vão os planos de voltar à natureza? Resgatar o espírito do lobo -, pergunto enquanto ele se senta ao meu lado no degrau.
– Vão bem. Importantes conquistas este ano. A pandemia não nos favorece exatamente, há muitos cães de rua entregando-se a abrigos na esperança de serem adotados por humanos entediados em suas quarentenas, desejosos de alguma vida com a qual possam brincar. Isso tem desfalcado um pouco nossas fileiras, mas prefiro ver como uma filtragem. Se não acreditam na causa, é bom que se revelem logo. A pandemia tem sido importante neste sentido: derruba máscaras.
– Er… bom você ter tocado no assunto das adoções, porque…
– Não diga. Você adotou um cachorro.
– Adotei.
– Depois de tudo que eu lhe contei? Depois de saber do plano de dominação dos cães de estimação, de conhecer seu projeto político?
– A pressão lá em casa foi grande.
– A pressão ou o tédio?
– Já era um plano que tínhamos há muito tempo e que ficou viável depois que nos mudamos para uma casa, com quintal etc.
– E deixa eu adivinhar: pegou um filhote em vez de um cão velho e doente e cheio de vícios, porque querem adestrá-lo segundo seu próprio comportamento humano. Talvez um vira-lata que tenha cara de labrador ou quem sabe fila, mas que não vá crescer demais para não consumir muita ração, e de pelagem curta para não dar trabalho de desembaraçar, mais fácil de escovar.
– Você acaba de descrever o Charlie.
– Charlie?
Eu nunca tinha visto um cachorro rir. Mas o cão cor-de-mel riu convulsamente, asmaticamente, como eu mesmo assistindo a episódios antigos de Mr. Bean.
– Gerson Charles I, na verdade.
– Desculpe, mas é realmente hilário. Você sabe que entrou para a estatística, não é? O número de adoções aumentou em 50% no país desde o início da pandemia. Talvez você tenha lido no jornal em que trabalha. E eu não precisaria te dizer isso, já que você é um homem inteligente
– Obrigado
– Ingênuo, manipulável, desatento, um pouco lerdo, mas inteligente.
– …
– Continuando: eu não precisaria te dizer isso, mas essa coisa da explosão de adoções fala menos sobre o plano de dominação dos cães domésticos e muito mais sobre a condição humana. Não é apenas o fato de quererem ter uma vida para brincar, uns bonecos vivos que possam ser castrados, adestrados, enfeitados e, em muitos casos, abandonados – e não se engane: muito serão abandonados quando isso tudo acabar. Não é só isso. É mais sobre como vocês, humanos, não sabem lidar com a solidão. Pois se sentem sozinhos mesmo quando acompanhados e isso lhes é insuportável. Buscam aparas. Muletas. Juntam-se em lives. Juntam-se em videochamadas. Juntam-se em redes sociais, orando por um like, um comment. Qualquer coisa que lhes dê a sensação de comunidade. Trazem cães e gatos para fazerem-lhes companhia. E não enxergam que, na verdade, o que não suportam não é exatamente a solidão: é a companhia de si mesmos.
Era um cão bastante articulado, preciso lembrá-lo, caro leitor.
– Mas você ainda não me disse o que quer comigo – disse o cachorro ao pé da igreja, como se não tivesse acabado de disparar uma metralhadora de balas de difícil deglutição. Eu já não me lembrava mais a que viera. Talvez alguma coisa a respeito de o Charlie roer o sofá, destruir as bromélias, acabar com a pata-de-elefante. Algo relacionado à dentição de filhotes. Mas já não importava mais.
– Nada não. Era só mesmo para me atualizar do seu plano de voltar à natureza, ando meio sem assunto pra crônica, não aguento mais ler ou escrever sobre pandemia -, desconverso.
– Se era isso, vou indo então. Se desistir do Gerson Charles, antes de levá-lo de volta ao abrigo de onde você o tirou, traga-o a mim. Quem sabe possa ensiná-lo uma coisa ou outra sobre nosso passado e sobre nosso futuro.
– Não vou devolvê-lo.
– Então tá. Manteremos contato.
E foi embora, descendo a Rua Halfeld apinhada de gente, o sol luzindo nos pelos caramelados uma insuspeita e rara dignidade.