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Escrita primitiva

escrita primitiva
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O negócio de escrever crônica é que você tem que ter hora certa pra isso. Estando submetido à lógica industrial, ao método do produtivismo e ao inapelável prazo, é bom que se estabeleça alguma disciplina. A minha é escrever no domingo, geralmente à noite, quando a casa resta silente, ou então bem cedo, quando as mulheres ainda não se desvencilharam dos lençóis. Optei pela primeira rotina nesse domingo que ora finda, mas, para dificultar minha tarefa monástica, o Flamengo aprontou: sapecou um histórico 6 a 1 para cima do Vasco.
Maior goleada da história do confronto, dizem os cronistas esportivos, tuiteiros e replicadores de informações de outrem. Nem me importa o recorde, mas dada a exaustão emocional, física e laríngea diante de tão elástico placar – e nem tão elástico montante de cerveja, creiam -, fica difícil reajuizar a mente de modos a produzir uma crônica minimamente aceitável. É que o futebol ativa áreas primitivas do nosso cérebro, diz a ciência, e para escrever uma crônica publicável é preciso estar em condições de ligar o Tico ao Teco, de forma a alcançar mínima graciosidade. De remeter, que seja, a pelo menos uma boa referência alheia. Ser inútil, enfim, claro!, mas com alguma classe.
Reportagem de Victoria Ziccardi, do periódico argentino La Nación, replicada pel’O Globo, explica que, nos apaixonados por futebol, o jogo faz acionar no cérebro os núcleos “accumbens”, que são responsáveis por comportamentos primitivos, relacionados ao prazer, à impulsividade, à saciedade, essas coisas de bicho. Então como, ardoroso leitor, como ajustar as vias neurais, em questão de minutos, de um comportamento “primitivo” a um pensamento “intelectual” de modos a compor um texto que possa ocupar aquela inadiável meia página de terça-feira?
Simples: entregando-me à derrota. Que no caso é a vitória do Flamengo. E, mais ainda, seus efeitos sobre esse símio que vos escreve, pescando estímulos lá dos cafundós dos “accumbens” e enfileirando em palavras, frases, orações e períodos. Fazendo do orangotango um literato, do cronista um sagui faceiro sobre os galhos da sintaxe. Que me perdoem os leitores vascaínos e toda a vastidão do arco-íris, hoje não escapo de escrever em vermelho e preto e nada além.

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