Stênio tinha uma vida boa. Uma vida ordinária e boa. Trabalhava de torneiro mecânico em uma oficina na Beira-Rio. Aos finais de semana, jogava bola. Disputava o Ruralzão na cabeça de área. Magro forte, era conhecido pelos adversários tanto pela dureza nas chegadas quanto pela lealdade nos 90 minutos. Botineiro nunca foi.
Sua diversão era bola e metal: Iron Maiden, Slayer, Metallica, Judas Priest… ô, alegria que era botar um “Run to the hills” no velho 2 em 1. Fechava a porta e tocava guitarra imaginária. Na última rua do morro, a casa onde morava com a mãe _ pai morto de cachaça muito cedo _ era a única cujas janelas faiscavam acordes pesados.
Se tinha festinha de rock, Stênio estava lá com os cabeludos, pulseira de espeto e jaqueta de tachinhas que a mãe mesmo pregou, uma a uma. E na segunda-feira, inteiro, concentrado, voltava a operar com esmero no torno as peças de metal.
A vida de Stênio era boa. Vivia para a mãe, para a bola e para o metal. Mas a mãe morreu. Do nada. Caiu pra trás e nunca mais levantou. O golpe fatal pegou Stênio também em cheio. Ele, que nunca tocara copo de cerveja, começou a beber. E quando a cachaça já não aplacava a dor, buscou na rua anestésicos mais fortes.
Por fim largou o serviço. A bola. E parou de voltar pra casa. Lá no alto do morro as janelas fechadas já não brilham riffs e refrões. Aqui embaixo, embaixo das marquises, das caixas de papelão, os olhos opacos tampouco refletem o Stênio que já foi um dia.
A não ser quando o rock rola na praça.
Quando o rock rola na praça, ao ouvir os primeiros estrondos da bateria, Stênio corre para a beira do palco. E dança. E bate cabeça. E chora chora chora copiosamente, e soluça, e abraça as pernas do cantor e beija suas botas e quando olha pra cima, através das lágrimas e do torpor, quando deixa-se olhar dentro dos olhos, aí sim dá a ver seu espírito, o espírito de um homem perdido na escuridão, sem rumo, um homem que quer apenas reencontrar o caminho de casa, daquela velha casinha, a velha casinha lá no alto do morro, cujas paredes ainda conservam a vibração silenciosa dos acordes da sua fabulosa guitarra imaginária.