Caro Maurício de Sousa
Eu estava na redação, cuidando do fechamento da edição desta Tribuna na última quinta, quando soube que você foi recusado como membro da Academia Brasileira de Letras.
Não entrarei, querido Maurício, no mérito da questão “histórias em quadrinhos são literatura?”. Para tanto, existem aqui em Juiz de Fora pessoas bem mais qualificadas, que estudam o tema em profundidade, como os professores Anderson Pires da Silva e Lucas Fazola Miguel.
Cumpre lembrar, todavia, que alguns artistas expandem os limites de sua própria arte. Veja Mia Couto pedindo um Nobel de Literatura para Chico Buarque, que semana passada recebeu seu imaculado Camões (em que pese muito o fato de ser também romancista, na minha insignificante visão, sua literatura não ombreia com sua fortuna musical). E lembremos Bob Dylan, cantor, compositor, soprador de gaita, que tem na estante seu próprio Nobel. Desnecessário mencionar, ainda, que a mesma Academia que o recusou, Maurício, diplomou no ano passado Gilberto Gil e Fernanda Montenegro, nem ele nem ela conhecidos primordialmente por seus dotes escrevinhadores.
Feita a atrevida glosa, quero ater-me a sua declaração, aliás finérrima, parabenizando Ricardo Cavaliere, que sentará seu filólogo traseiro na cadeira de número 8 da ABL. Disse você na ocasião: “Nesse processo, todos que amam quadrinhos, eu incluído, ganhamos quando tanto se discutiu sobre a importância dos quadrinhos, seu papel fundamental na formação de leitores e como eles podem contribuir, de diversas formas, com a literatura”.
Não levantei da minha inumerada cadeira para aplaudi-lo de pé, Maurício, para não causar espécie entre as colegas que ainda resistiam na redação àquela hora. Você foi perfeito, ainda que modesto. Porque a importância dos quadrinhos, de novo, em minha irrelevante visão, vai muito além da formação de leitores. Falo por mera experiência, eu, leitor formado pelos quadrinhos.
Foi pelos “comics” que me alfabetizei. Em casa, Maurício, minha mãe reforçava o trabalho das professoras me ajudando a decifrar os balões. Toda sexta-feira, ao sair da escola, ela separava suadas moedas ganhas na labuta diuturna na máquina de costura para me comprar um gibi. Confesso, eram do Batman, do Homem-Aranha, minhas preferências, e não da Turma da Mônica, que entretanto lia sempre que podia botar as mãos em um exemplar emprestado.
Através dos quadrinhos tomei gosto pela leitura e também aprendi a desenhar um pouco. Nada refinado, anos-luz de ser um John Byrne ou um Shiko, uma Laerte ou um Moebius, mas o suficiente para fazer uns trocados no início da minha vida profissional, prestando serviços para agências de publicidade e mesmo desenhando, quem diria, quadrinhos sob encomenda.
Foi nos quadrinhos, Maurício, que tive contato primeiro com Allan Poe. Com Kipling. Shakespeare. Melville. Os quadrinhos me prepararam para conhecer Klimt e Michelangelo e Bosch e Picasso. Com as HQs aprendi, intuitivamente, que não se separa sujeito de verbo, que ascensão não tem cedilha e que imagens potencializam palavras e vice-versa.
Com os quadrinhos, Maurício, eu me afeiçoei às bancas de jornais e sua vastidão de fotografias e ilustrações e textos, textos, textos. E por conta dos quadrinhos, fiz da palavra meu ganha-pão. Foram os quadrinhos, Maurício, sobre todas as coisas, que me deram rumo na vida.
Vejo que já tomei muito do seu tempo, enveredando por caminhos por demais pessoais, então vou encerrando por aqui. Lamento que nem todos tenham dimensão do seu tamanho, Maurício. O universo que você criou, onde habitam Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali, Chico Bento, Rosinha, Bidu, Franjinha, o Louco, Tina, Rolo, Penadinho e todos nós que a ele nos entregamos, não é menos fantástico que a Macondo de García Márquez. O Bairro do Limoeiro não é menor que a Terra-Média de Tolkien. Nem sua inquestionável imortalidade depende de qualquer diplomação.